Para os sacerdotes mânticos, conhecedores das Leis e dos propósitos divinos, certamente que sim e, paradoxalmente, o respeito a crença alheia seria a razão.
Devido à polêmica internacional incitada pela publicação das charges do profeta Maomé, onde se explicita ausência de consideração (do latim considere = com as estrelas) para com o que simboliza a sacralidade da religião estranha, do estrangeiro, colocamo-nos a seguinte questão: deve-se ou não estabelecer limites para liberdade de expressão?
No texto anterior versamos sobre a "Lei da Hospitalidade ao Estrangeiro", ponderemos agora sobre como os antigos gregos teriam abordado esta questão.
Os basileus, devido à sua sabedoria - sua sophrosyne, que é limite a fim de evitar tragédias da hybris, a desmesura - eram eleitos líderes pela própria comunidade. Estes, posteriormente serão denominados reis (lembremo-nos de Ulisses, Rei de Ítaca) e, numa Grécia já prefigurando uma pólis (estamos em cerca de 800 a.C.) esta função será exercida pelos eupátridas.
Trata-se de uma elite de aristocratas (aristoi = os melhores, os bem-nascidos) que, por linhagem hereditária eram detentores das mais férteis terras, guardiães dos cultos religiosos e das Leis. Notem que Religião e Lei eram indissociáveis. A eles cabia a decisão final sobre toda e qualquer questão relevante para seu povo.
Inicialmente, os povos puderam contar com a fidelidade da justiça dos homens - Diké - personificada e mantida pelos reis (eupátridas) amalgamada, posto que em consonância, à justiça divina - Thémis, de Zeus.
Gozando de uma autoridade ainda mais respeitada encontramos a figura do sacerdote, o mântis. Estes, com os quais os reis sempre se aconselhavam, eram os que estabeleciam contato com os deuses, leitores de sinais que, através da arte do divinatio desvelavam os propósitos divinos, daí o termo adivinhação.
O oráculo do templo de Delfos, em Atenas contava com as pitonisas, sacerdotisas que resguardavam certas regras celibatárias e alimentícias entre outras e que tinham como propósito responder às perguntas que lhes eram indagadas.
Neste tempo, a sabedoria passava obrigatoriamente pela sensibilidade dos sacerdotes em interpretar vôos de pássaros: para a direita, bons augúrios, para a esquerda, o contrário; vísceras de animais, sobretudo o fígado; a observação dos ciclos naturais tais como as estações do ano, fases lunares e o percurso dos astros errantes, na verdade planetas, que pareciam errar o caminho por entre as constelações fixas.
Mas as respostas dos mânticos não eram necessariamente claras. Se fôssemos consultá-los hoje sobre a polêmica em pauta talvez viéssemos a ouvir algo obscuro para nossos parcos entendimentos tal como: "o que foi sempre será". Ou ainda: "os céus iluminam o que virá".
Devido ao que o grande poeta grego Hesíodo, em sua obra "O trabalho e os dias" chamou de "reis comedores de presentes", ou seja, corrupção, interesses bélicopolíticos ou econômico-mercantis escusos, devido à manipulação, a áurea ética e a autoridade dos sacerdotes mânticos foi se enfraquecendo.
A sabedoria oriunda da justiça de Zeus Thémis, o argumento "mythói", apesar de seu valor, perdeu espaço para o discurso "lógoi". Mas a justiça dos homens Diké também está sujeita à manipulação e, ao desconsiderar o "mythói" despreza a sacralidade de Thémis.
Retomando: a liberdade de expressão deve ou não ter limites?
Para os sacerdotes mânticos, conhecedores das Leis e dos propósitos divinos, certamente que sim e, paradoxalmente, o irracional seria a razão.
Em nossa concepção atual seria o que o grande tragediógrafo grego Eurípides afirmou em sua obra Médeia e o filósofo francês Blaise Pascal denominou "La ordre du coeur: o coração tem razões que a própria razão desconhece". É a sacralidade daquilo que os gregos denominavam aidos (prefixo de negação "a"=não + "idos" =ver) - o que não pode ser visto nem compreendido - que exige respeito.
Trancafiando-nos numa concepção lógico-racional, a persuasão pode muito bem nos confundir, pois como já nos foi alertado pelo pintor espanhol Francisco Goya: "o sono da razão produz monstros".
Já nos sabemos "sujeitos históricos" e é o desenrolar da própria história da civilização humana que legitima, na lógica e na razão cegas, tantas atrocidades. Os gregos nos conclamam a considerar nossas semelhanças ao invés de nossas diferenças, o cerne comum de nossa humanidade.
Assim, a elucidação desta contenda pode ser mais uma vez, apontada por eles. No frontispício do templo de Apollo em Delfos lê-se: "Nada em excesso". Na busca pela justiça dos homens (Diké) os antigos recorriam e espelhavam-se na justiça divina (Thémis) presente no mito.
Para que haja Justiça, que nada mais é que um conceito abstrato que abriga harmonia, simetria e eqüidade, está implícito algo caro aos gregos: sophrosyne, a boa medida. É ela que permitirá a conciliação entre o Mythói e o Lógoi: Thémis e Diké, os deuses e os homens.
Um comentário:
Muito, muito bom!
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