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11 de jan. de 2008

Mito e Razão

Onde está a Verdade (aléthea): no mito (mýthoi) ou na razão (lógoi)?

Costumeiramente, abordamos a obra de um Pensador, infelizmente já falecido e, com isso, deixamos de saber: o que faz um Filósofo vivo e atuante? Consternados com a perda recente do maior especialista em Grécia Clássica, o renomado Filósofo, historiador e antropólogo francês Jean-Pierre Vernant (1914-2007), vamos conhecer um pouco de seu legado e desvelar o complexo e exaustivo trabalho de uma de suas discípulas: trata-se da competente Filósofa brasileira Ivanete Pereira.

Sua obra “Aspectos sagrados do mito e do lógos”, de notória qualidade acadêmica, é prova incontestável da condutora e inapagável luz de Vernant que, tomada com maestria pela autora, mantém acesa a chama que adentra à escuridão de nossa caverna.

Pereira busca esclarecer a importância e o lugar do lógos alethés (palavra sagrada) anterior à sua transformação em lógos filosófico. Arqueóloga, a pensadora retrocede ao Império Micênico e esmiuça uma delicada e fundamental questão: a de quando, como e porque se dá a separação entre o mýthos e o lógos.

O mito, esclarece Rachel Gazolla: “faz parte de nossa psyché, é um modo de ler o mundo, não é irracional, como querem alguns intérpretes. A palavra irracional, hoje, é extremamente pesada para explicar o pensamento mítico; afinal, ele é um pensamento bem estruturado, porém sem necessidade de provas, de argumentos. Seu valor de verdade não é aferido por sentenças, não se trata somente da linguagem, do lógos como discurso argumentativo, pois a psyché é bem mais extensa que a criação do pensar-dizer na forma sentencial”.

Em “Aspectos sagrados do mito e do lógos”, vemos que “ambas as palavras tiveram praticamente a mesma origem e uso iniciais, mas, após ocorrer uma diferenciação no uso, o mýthos ficou vinculado às narrativas acerca dos deuses, e o lógos, revestiu-se do aspecto lógico da filosofia”.

Mas onde estaria a Verdade (aléthea)? No mito ou no lógos?

Segundo o saudoso Jean-Pierre Vernant: a “Verdade (aléthea), não pode ser separada da ordem ritual, da prece, ou do direito, ou da potência cósmica que garante o retorno regular das auroras”. Sendo o “Lógos alethés” palavra divina e verdadeira, dispunham dela, os basileus (reis), os sacerdotes (advinhos) e os aedos (poetas), sendo que estes últimos as recebiam diretamente da divindade, mediada pelas Musas, filhas de Zeus e Mnemosyne. Inspiravam o poeta ditando-o ao seu ouvido, fazendo dele um mero porta-voz do “divino” (théos).

Para Vernant “Mýthos é da ordem do legêin, como indicam o composto mythologêin, mythología, e não contrasta inicialmente com os logoí, termo cujos valores semânticos são vizinhos e que se relacionam às diversas formas do que é dito”.

Ivanete Pereira salienta que “num determinado estágio da sociedade grega, os dois conceitos, mýthos e lógos, não apresentavam grandes diferenças entre si. E a palavra formulada no contexto de uma narrativa sagrada como a Teogonia que narra a origem dos deuses pelo monumental poeta grego Hesíodo, tanto pode ser considerada mýthos como hiéros lógos (discurso ou palavra sagrada). Só muito mais tarde essas palavras do vocabulário épico cairão em desuso e serão praticamente substituídas por lógos e legêin”. Ao que parece, foi esse processo de substituição que gerou a idéia posterior de oposição entre mýthos, que ficou associado aos hieroí logoí, e lógos, que passou a ser associado à Filosofia.

Para que possamos compreender melhor o fenômeno comum ao processo de evolução lingüística, onde há ambigüidade lexical, ou seja, a palavra tem mais de um significado, tomemos por exemplo a palavra “animal”. Como explica Jean Lauand, seu emprego sempre fora o de nomear os animais, o não-humano. Hoje, embora “animal” permaneça referindo-se à espécie, compreende-se que, quando algo se revela excepcionalmente bom, ousado ou radical (resquício da arrojada ferocidade de alguns animais?) é adjetivado de “animal”.

No caso da palavra lógos, contribuiu para isso seu uso no âmbito das matemáticas e da teoria da música dos pitagóricos, uma vez que o significado original do termo mythologêin (“reunir” e “contar”) é mais apropriado aos números. Gadamer explica: “...a palavra lógos narra nossa história desde Parmênides e Heráclito. O significado originário da palavra “reunir”, “contar”, remete ao âmbito racional dos números e das relações entre números no qual o conceito de lógos se constituiu pela primeira vez”. A partir desse contexto se generaliza a palavra lógos como conceito contrário a mýthos. Em oposição àquilo que refere uma notícia que sabemos somente graças a uma simples narração, “ciência” é o saber que repousa sobre a fundamentação e a prova.

Pereira esclarece que “com o tempo, as duas palavras passaram a ser utilizadas em oposição: uma, dado o uso associado à épica, passou a designar as narrativas sobre os deuses; outra passou a ser usada para designar a palavra do filósofo que, em oposição à narrativa sagrada, é objeto de reflexão e, eventualmente, até de comprovação. Desvincula-se, assim, a palavra que discorre acerca do ser e das coisas, a palavra-movimento, da palavra que simplesmente narra a história dos deuses como um fim em si mesma”.

Considerando o que foi exposto acima, concluímos que a genialidade de Ivanete Pereira está na tese de que “não se pode pensar que há oposição de sentido entre esses termos, pois tanto os lógoi, os mýthoi podem ser portadores da Verdade (aléthea)”.

Saiba mais: Aspectos sagrados do mito e do lógos – Ivanete Pereira. Educ-2006.
As Origens do Pensamento Grego – Jean-Pierre Vernant. Trad. Ísis Borges B. Da Fonseca. 11ª ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
Mito e Pensamento entre os Gregos – Jean-Pierre Vernant. Trad. De Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Mito e sociedade na grécia antiga – Jean-Pierre Vernant. Trad. Myriam Campello. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio.
Entre mito e política – Jean-Pierre Vernant. Trad. Cristina Murachco. 1 ed. São Paulo, Edusp.

2 comentários:

Luciene Felix disse...

Querida Patrícia,

Fico feliz que tenhas apreciado o texto.

E gostou também do Blog!
Acabo de acessar alguns de seus trabalhos: muitíssimo interessantes!

Onde estás fazendo a Licenciatura? Vamos tomar um café amiga?
Estou às ordens! Caminhadas muitíssimo floridas para você também.
Bjs.,

Lu.

Anônimo disse...

Olá Luciene!

Adorei sua msg!
E que bom que gostou do meu trabalho. Sou completamente apaixonada pelo o que faço e palavras doces são sempre bem-vindas :)

Vamos tomar um café sim (adoroooo)!

Beijos e linda semana
P.

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ESCOLHA & CLIQUE (leia no topo). Cultura faz bem ao Espírito!


Eis que a Sabedoria reina, mas não governa, por isso, quem pensa (no todo) precisa voltar para a caverna, alertar aos amigos. Nós vamos achar que estais louco, mas sabes que cegos estamos nós, prisioneiros acorrentados à escuridão da caverna.

Abordo "O mito da caverna", de Platão - Livro VII da República.

Eis o télos (do grego: propósito, objetivo) da Filosofia e do filósofo. Agir na cidade. Ação política. Phrônesis na Pólis.

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As exposições mitológicas explicitam arquétipos (do grego, arché + typein = princípio que serve de modelo) atemporais e universais.

Desse modo, ao antropomorficizarem os deuses, ou seja, dar-lhes características genuinamente humanas, os antigos revelaram os princípios (arché) de sentimentos e conflitos que são inerentes a todo e qualquer mortal.

A necessidade da ordem (kósmos), da harmonia, da temperança (sophrosyne) em contraponto ao caos, à desmedida (hýbris) ou, numa linguagem nietzschiana, o apolíneo versus o dionisíaco, constitui a base de toda antiga pedagogia (Paidéia) tão cara à aristocracia grega (arístois, os melhores, os bem-nascidos posto que "educados").

Com os exponenciais poetas (aedos) Homero (Ilíada e Odisséia), Hesíodo (A Teogonia e O trabalho e os dias), além dos pioneiros tragediógrafos Sófocles e Ésquilo, dispomos de relatos que versam sobre a justiça, o amor, o trabalho, a vaidade, o ódio e a vingança, por exemplo.

O simples fato de conhecermos e atentarmos para as potências (dýnamis) envolvidas na fomentação desses sentimentos, torna-nos mais aptos a deliberar e poder tomar a decisão mais sensata (virtude da prudencia aristotélica) a fim de conduzir nossas vidas, tanto em nossos relacionamentos pessoais como indivíduos, quanto profissionais e sociais, coletivos.

AGIMOS COM MUITO MAIS PRUDÊNCIA E SABEDORIA.

E era justamente isso que os sábios buscavam ensinar, a harmonia para que os seres humanos pudessem se orientar em suas escolhas no mundo, visando atingir a ordem presente nos ideais platônicos de Beleza, Bondade e Justiça.

Estou certa de que a disseminação de conhecimentos tão construtivos contribuirá para a felicidade (eudaimonia) dos amigos, leitores e ouvintes.

Não há dúvida quanto a responsabilidade do Estado, das empresas, de seus dirigentes, bem como da mídia e de cada um de nós, no papel educativo de nosso semelhante.

Ao investir em educação, aprimoramos nossa cultura, contribuimos significativamente para que nossa sociedade se torne mais justa, bondosa e bela. Numa palavra: MAIS HUMANA.

Bem-vindos ao Olimpo amigos!

Escolha: Senhor ou Escravo das Vontades.

A Justiça na Grécia Antiga

A Justiça na Grécia Antiga

Transição do matriarcado para o patriarcado

A Justiça nos primórdios do pensamento ocidental - Grécia Antiga (Arcaica, Clássica e Helenística).

Nessa imagem de Bouguereau, Orestes (Membro da amaldiçoada Família dos Atridas: Tântalo, Pélops, Agamêmnon, Menelau, Clitemnestra, Ifigênia, Helena etc) é perseguido pelas Erínias: Vingança que nasce do sangue dos órgãos genitais de Ouranós (Céu) ceifado por Chronos (o Tempo) a pedido de Gaia (a Terra).

O crime de matricídio será julgado no Areópago de Ares, presidido pela deusa da Sabedoria e Justiça, Palas Athena. Saiba mais sobre o famoso "voto de Minerva": Transição do Matriarcado para o Patriarcado. Acesse clicando AQUI.

Versa sobre as origens de Thêmis (A Justiça Divina), Diké (A Justiça dos Homens), Zeus (Ordenador do Cosmos), Métis (Deusa da presciência), Palas Athena (Deusa da Sabedoria e Justiça), Niké (Vitória), Erínias (Vingança), Éris (Discórdia) e outras divindades ligadas a JUSTIÇA.

A ARETÉ (excelência) do Homem

se completa como Zoologikon e Zoopolitikon: desenvolver pensamento e capacidade de viver em conjunto. (Aristóteles)

Busque sempre a excelência!

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Ser "sem nôus", ser "sem amor" (bom daimon) é ser "sem noção".

A Sábia Mestre: Rachel Gazolla

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O Sábio Mestre: Antonio Medina Rodrigues (1940-2013)

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