Nos primórdios da pólis grega, numa época em que o poder do discurso fomentava a vida no Ágora (praça pública), maravilhando a todos os ouvintes, logógrafos eram “profissionais” como os que intitulamos hoje advogados: arístois (os bem nascidos, os melhores), cultos, bem instruídos e versados na arte da persuasão. Convém ressaltar que, nem todo sofista era logógrafo; mas todo logógrafo era sofista.
À chegada de um cidadão, reclamando a posse de um carneiro, por exemplo, o logógrafo indagava: Bem, e se o indivíduo a quem acusas já tiver vendido ou simplesmente comido teu animal? Ao que o queixante, resoluto, antecipava: Que me pague então dez dracmas!
Não era incomum que esse mesmo logógrafo fosse acionado pelo réu para que redigisse a argumentação de sua defesa. Curioso é que ele, acendendo uma vela pra deus outra pro diabo, se dedicava e muito na redação dos dois discursos, empenhadíssimo em descobrir a verdade, para que se fizesse a justiça.
Teria a arte da dialética (dialektiké téchne) poder para alcançar e revelar a tão almejada verdade?
Quem primeiro legou escritos sobre a ontologia (ciência do ser-enquanto-ser) que, juntamente com a teologia constitui um dos ramos da metafísica, foi o filósofo grego pré-socrático Parmênides, da cidade de Eléia (515-450a.C.). Não por acaso, Platão reconheceu nele, mais que um Mestre, um “pai espiritual”.
Conhecer a filosofia de Parmênides é absolutamente necessário para que possamos compreender o processo que conduz ao conhecimento. Para ele, a verdade não é alcançável sem esforço e, também não o é por todos.
Ao se deslumbrar diante da physis (natureza) e afirmar que Ser é e que não pode não-ser, o eleata estabeleceu a “Lei” ou “Princípio lógico da não-contradição”. Esse grande princípio, formulado com um rigor lógico formalmente incontestável por Parmênides, receberá de Aristóteles a sua mais célebre formulação e defesa. Constituirá no fundamento de toda lógica, desde os tempos mais remotos até os dias atuais: É. Se admitíssemos também o “não-ser”, o “não-ser” seria; e daí já não poderia “não-ser”. Parmênides foi claro ao enfatizar a proibição do não-ser. Fiquemos, portanto, com o Ser (absoluto) de Parmênides: É.
Mas, o que é o Ser que é? Melhor inquirindo: é o que? Se nos for vetado a possibilidade de falar, de dizer sobre o Ser, o que nos resta? Pensar o Ser. Somente “pensar”? Nada dizer?
Emudeceríamos ou incorreríamos numa tautologia do tipo: o que é o Ser? O Ser é. E o que é? É o Ser. Ou, como afirma o velho testamento (2º livro do Pentateuco, Êxodus, 3,14): “Deus disse a Moisés: Eu sou aquele que sou”.
Noutro exemplo: o que é Deus? Deus é eterno. O que é eterno? Eterno é Deus. E assim (eis outra misteriosa soleira da metafísica), como alertava Parmênides: “(...) é preciso que de tudo te instruas, do âmago inabalável da verdade bem redonda (...)”, num círculo eterno.
Ora, se não disséssemos nada sobre o Ser, se nos tivéssemos calado, o Ser teria engolido o discurso (lógos), que era justamente a instância racional que poderia dizer algo dele. Talvez o Ser, como a verdade, seja abstrato, grandioso demais para ser abarcado e formulado, sentenciável, ajuizável conforme os limitados instrumentos lógicos que dispomos. Kant afirma que “A razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos”. E Heidegger proclama a metáfora “do som ressonante do silêncio” como sendo a melhor aproximação que se tem da iluminação atingida pela contemplação não-discursiva.
Para a pólis, para a cidade que gira em torno do jurídico e do político, no entanto, o “vazio”, o “indizível”, esse “som ressonante do silêncio” ontológico, não interessa.
Faz-se necessário, para que se possa “dizer do Ser” (através das coisas que são), fundar, estabelecer, instituir a possibilidade de um discurso; colocar em diálogo, em lógos duplo (mas não estamos aqui nos referindo a duas pessoas, pois em nós mesmos o lógos se subdivide, afirmando ou negando algo de algo) através da linguagem.
O que vai permitir que algo seja isso ou aquilo (mesmo contrário, como ser e não-ser) é o lógos. É da dýnamis (potência) do lógos desenvolver a arte da dialética: razão, discurso, argumentação, reflexão, recolhimento, contagem. O lógos prova, persuade, coloca em palavras nosso pensamento.
Graças à linguagem, estamos aptos a dizer do Ser (na verdade, das coisas que são), podemos discursar: Ser é isso, não é aquilo (repare que ela, a linguagem permite que o não-ser seja).
É do lógos: classificar, sistematizar, organizar, ordenar de todas as maneiras pelas quais um atributo (predicado) pode ligar-se a um sujeito. Dos seres que são, “ancorados” no Ser [que simples e absolutamente é] do qual não havia como dizer mais nada, falamos e dizemos outras coisas deles mesmos.
Ampliando a plasticidade do lógos, descolamo-nos da ontologia. Como um logógrafo, emitimos juízos, opiniões (doxa), criamos sentenças e nossos dizeres são passíveis de verdade ou falsidade.
As palavras detêm de uma força própria que tem conseqüência ético-política. O “Ser” de Parmênides, como o Deus de Moisés, simples e absolutamente É. Mas, livres somos. E no lógos humano, tudo é possível, inclusive “ser e não-ser”.
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Um comentário:
Estou preparando um anteprojeto como trabalho final de curso de Direito e estou ainda escolhendo o tema para ser desenvolvido no próximo ano.
Tenho me interessado pela História do Direito ao longo do tempo.
Especialmente aquela que envolve o tipo de educação que orienta esse profissional.
Entendo que a figura dos logógrafos revela na antiga Grécia o tipo de educação que permeava aquele povo. Já voltado para atender uma elite, certamente a aristocracia.
Gostei muito da fluência observada nesse texto e gostaria de pedir alguns outros referenciais que possam me auxiliar nessa tarefa, que resumidamente é demonstrar que ainda hoje o exercício do Direito, a despeito de todos os esforços, ainda conserva a comunhão entre a justiça e as classes dominantes.
Muito obrigado!
Murilo Andrade
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