“A caveira não abandona jamais a
máscara de olhos fixos; a vida nada mais é que uma indumentária com chocalhos
que o Nada veste para soar, antes de arrancá-la fora. Que é o Todo? Nada mais
que o Nada. ” Teólogo e filósofo escolástico medieval Boaventura (1221-1274)
Para esclarecer, de forma clara e
inequívoca, o que é o niilismo, bastava enviar à redação do jornal o título
acima e mais nada. Uma folha totalmente em branco, sem absolutamente nada.
Inquietante, não?
Não é de modo menos dramático que
o filósofo italiano Franco Volpi (1952) inicia sua obra “O niilismo” (Edições
Loyola): “É de incerteza e precariedade a situação do homem contemporâneo. (...).
Rompidos a estabilidade dos valores e os conceitos tradicionais, torna-se
difícil prosseguir o caminho. ”
A reflexão filosófica, diz ele,
procurou diagnosticar essa situação, pela análise dos males que afligem o homem
de hoje e dos perigos que o ameaçam, chegando a identificar como causa
essencial do fenômeno o “niilismo”.
Mas
o que é o niilismo?
A palavra em si aparece entre o
fim do século XVIII e início do XIX, mas tornou-se tema comum de discussão no
século XX, quando o niilismo assoma como problema, com toda a virulência e
amplidão.
Exprimindo esforços artísticos,
literários e filosóficos voltados para a experimentação do “poder
do negativo” e para a vivência de suas consequências, o niilismo trouxe à luz o
profundo mal-estar que abre como uma rachadura a auto compreensão de nosso
tempo, afirma Volpi.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche
(1844-1900) via no niilismo “o mais perturbador de todos os hóspedes”: um
visitante funesto perambulando por todos os cômodos da casa, sem que se pudesse
expulsá-lo porta afora. Mas que é, afinal, o niilismo?
Nietzsche, o primeiro grande
profeta e teórico do niilismo respondeu que lhe falta a finalidade (télos). Carece de resposta à pergunta
“para quê? ”.
Que significa o niilismo? Que os valores supremos se depreciaram
(confira o artigo anterior, dezembro de 2017), que não há mais a que se
agarrar: “Ó pai, ó pai, onde está teu seio infinito, para que eu possa nele
descansar? ” (Jean Paul Sartre, 1977).
O niilismo constitui, assim, uma
situação de desnorteamento provocado pela falta de referências tradicionais, ou
seja, dos valores e ideais que representavam uma resposta aos porquês e, como
tais, iluminavam a caminhada humana, esclarece Volpi.
Observando a dinâmica que
desencadeia o esvaziamento dos valores supremos e suscita a irrupção do
niilismo, Nietzsche afirma: “O homem moderno acredita experimentalmente ora num
ora noutro valor, para depois
esquecê-lo. Cresce sempre mais o círculo dos valores superados e esquecidos.
Percebe-se sempre mais o vazio e a pobreza de valores."
E prossegue: "É um movimento
incessante, apesar de todas as grandes tentativas para detê-lo. No máximo, o
homem ousa uma crítica genérica dos valores. Reconhece sua origem. Conhece
demais para não crer mais em valor algum. Esse é o pathós, o novo frêmito.... Essa é a história dos dois próximos
séculos...”.
A profecia de Nietzsche
confirmou-se: a onipresença multiforme do niilismo torna-o tão visível que,
paradoxalmente, fica difícil apreendê-lo numa definição clara e unívoca.
Segundo Franco Volpi, não há
consenso em seu diagnóstico nem na anamnese de suas patologias e do mal-estar
cultural que representa: “Até os estudos históricos sobre a gênese do termo
acabaram por mostrar como tem sido complexa e variada a manifestação desse fenômeno.
”
Etimologicamente, o niilismo – do
latim nihil (nada) – é o pensamento
obcecado pelo nada.
O sofista Górgias (485 a.C.) talvez
seja primeiro niilista da história ocidental, pelo terrível raciocínio que nos
legou: nada existe; se alguma coisa existisse, não a poderíamos conhecer; e,
se a conhecêssemos, não seria comunicável.
O filósofo medieval Fredegiso di
Tours (falecido em 824 d.C.) em “Da
substantia nihili et tenebrarum”, numa atitude filosófica escandalosa para
a época, pretendeu provar que o nada se impõe com sua presença e possui,
portanto, algum ser, alguma substancialidade.
E o frade dominicano alemão, Mestre
Eckhart (1260-1328) numa estonteante annihilatio,
declara que Deus e o nada, “o anjo, a mosca e a alma” são a mesma coisa.
Leonardo da Vinci (1452-1519), anotou
em seu Codex Atlanticus: “Entre as
grandes coisas que estão abaixo de nós, o ser do nada é imensamente grande”.
E Leibniz
(1646-1716), com a célebre pergunta: "Por que há algo mais do que
nada?", e sua inquietante resposta: "Porque nada é mais simples e
fácil do que algo." Seria o nada, mais do que o fim para o qual
caminhamos, paradoxalmente, também premissa?
Como uma sombra permanente, o
nada sempre acompanhou e preocupou a reflexão filosófica, tal qual Mefistófeles
em relação a Fausto, na obra magistral de Goethe (1749-1832): “O espírito que
sempre nega” insinua-se no âmago da mente humana, fortalecendo-se com a razão
da negatividade já proclamada por Anaximandro (610-545 a.C.): “... Pois tudo
quanto nasceu merece ser aniquilado; portanto, era melhor nada ter nascido. ”.
Volpi chama a atenção para o fato
de que nem pode a filosofia prescindir do nada, se é verdade que, para
resguardar sua missão, a saber, a busca do Ser como Ser, deve ela distinguir
este último [o Ser] de seu oposto essencial, o Nada.
Eis porque o filósofo alemão
Martin Heidegger (1889-1976) chegou à seguinte conclusão drástica: “O ponto de
comparação mais difícil, mas também menos enganador, para avaliar a
autenticidade e o vigor de um filósofo é ver se ele capta, logo e radicalmente, no
ser do ente, a proximidade do nada. Quem não viver essa experiência ficará,
de modo definitivo e sem esperança, fora da filosofia. ”
A respeito do niilismo, Franco Volpi
sustenta a mesma convicção válida para todos os verdadeiros problemas
filosóficos: eles não têm solução, mas história.
Na reconstrução histórica do
niilismo, é opinião comum que Dostoievski (1821-1881) em caráter literário [sem
esquecer Turgueniev (1818-1883)] e Nietzsche, sob o viés mais filosófico, são
os dois fundadores e os principais teóricos do niilismo.
Bem, o ano acaba de começar,
absolutamente novo, em branco. Especificamente sobre esse “nada” que ainda é
2018, há o que se pensar, o que se fazer. E muito.
Prossigamos, amigos, afinal,
o “eco do ossário” ainda não bradou pela última vez.
Luciene
Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia
Greco-romana
lucienefelix.blogspot.com - Instagram:
lufelixlamy
WhatsApp (13) 98137-5711
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