O trecho que transcrevo abaixo é
um recorte de um artigo que publiquei quando estudei “O Banquete” no Curso de
Graduação em Filosofia na PUC-SP com a Titular de Filosofia Antiga, Profª Drª
Rachel Gazolla.
Para conferir o artigo completo, clique AQUI.
O comediógrafo grego Aristófanes insistirá no poder
que o Amor possui e versará sobre sua natureza histórica. Com o seu famoso mito
dos andróginos, legitimará a homo afetividade e a desenfreada busca pelo que
denominamos “almas gêmeas”.
Eis que os seres humanos,
inicialmente eram de três tipos: homem, mulher e andróginos. E eram também
duplicados e unidos pelo umbigo.
Zeus (Júpiter, o soberano do Olimpo), temendo a presunção de tanta autossuficiência,
para enfraquecê-los, divide-os em dois e cada uma das partes passará a vida à
procura de sua outra metade original, que pode ser um outro homem, caso o
original tenha sido a união de dois homens, uma mulher, em busca de outra OU ainda um
homem e uma mulher que se anseiam, caso dos andróginos.
Para Aristófanes, o Amor é
justamente essa busca constante e incansável por sua outra metade a fim de se
restabelecer o original e primitivo “todo”.
Não se trata somente de união
sexual, mas de “uma coisa” que a alma de um quer da alma do outro. Sobre essa
“coisa” a alma não pode dizer, mas “advinha” o que quer e indica por enigmas.
Se o ferreiro divino Hefestos (Vulcano,
na mitologia romana) surgisse com seus instrumentos indagando aos amantes: “Que
é que quereis, ó homens, ter um do outro? (...). Porventura é isso que
desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que
nem de noite nem de dia vos separeis um do outro?
Pois se é isso que desejais,
fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um
só e, enquanto viverdes, como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e
depois que morrerdes, lá no Hades (Plutão na mitologia romana), em vez de dois ser um só, mortos os dois
numa morte comum; mas vede se é isso o vosso amor, e se vos contentais se
conseguirdes isso”.
Aristófanes diz que depois de
ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou demonstraria
querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava
desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só.
Reiterando que nossa natureza é
una, que éramos um só, Aristófanes conclui que é ao desejo e procura do todo
que se dá o nome de Amor.
(...)
Ao ser indagada por Sócrates
sobre a origem do Amor, Diotima (da cidade de Mantinéia, uma sábia versada nas artes da feitiçaria) relata-nos o belíssimo mito de que quando
Afrodite nasceu, houve uma grande festa no Olimpo e que, entre os demais, se
encontrava Recurso (Póros), possuidor de toda riqueza.
Esse rico rapaz era
filho da deusa Métis (a sabedoria, inteligência prática, prudência): “Depois
que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza [Penia, uma jovem
mendiga], e ficou pela porta.
Ora, Recurso, embriagado, penetrou o jardim de
Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando (...) engendrar um filho de Recurso,
deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor.
O Amor, filho de um pai sábio e
rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre, nasce sob o signo da beleza: “Eis
porque ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício,
ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela”.
(...) “Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo,
como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra
e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a
natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão.
Segundo o pai, porém, ele é
insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e energético, caçador
terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a
filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista (...) está no
meio da sabedoria e da ignorância. (...) Nenhum deus filosofa ou deseja ser
sábio – pois já é –, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa.
Nem também
os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o
difícil da ignorância, no pensar (...). Não deseja, portanto quem não imagina
ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso”.
A estrangeira reitera que uma das
coisas mais belas é a sabedoria e o Amor é amor pelo belo, de modo que é
forçoso o amor aspirar à sabedoria, como um filósofo. Sendo filósofo está entre
a sabedoria e a ignorância.
A ação (do Amor) é o que garante
aos mortais alcançar a imortalidade que lhes é possível.
Diotima ressalta uma
hierarquia sobre a concepção amorosa dizendo que há os que concebem na alma
(belos pensamentos e virtudes) mais do que no corpo. Mas a mais importante,
disse ela, e a mais bela forma de pensamento é a que trata da organização dos
negócios da cidade e da família, e cujo nome é prudência e justiça.
Será o Amor, um grande deus?
Indômita potência? Inspirador de virtudes? A divindade mais antiga? Eterno?
Universal, pois presente em todo cosmos? A busca pela unidade? Belo e jovem? Um
tipo de delírio?
Filósofo por excelência? Concepção de nossa alma? Um daímon
(anjo) entre o divino e o humano? Afortunada benção que garante felicidade
(eudaimonia)? O que é o Amor? Entusiasmada que sou, do Belo em si platônico,
vivencio-o como a assinatura do theós (divino) em todos nós.
Saiba mais:
O Banquete, ou, Do amor – Platão.
Trad. José Cavalcante de Souza. Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
SOBRE ALMAS GÊMEAS (entrevista concedida a Revista
Capricho em Fev/2008 )
Como a mitologia grega explica a existência de almas gêmeas? É algo
entre homem e mulher apenas?
Um dos mitos gregos que ilustra
bem a condição das almas gêmeas, é o proferido pelo comediógrafo Aristófanes no
início da obra “O Banquete” (sobre o Amor) de Platão.
No famoso mito dos andróginos, os
seres humanos, inicialmente, eram de três tipos: homem, mulher e andróginos. E
também eram duplicados (dois em um só), unidos pelo umbigo. Tínhamos então,
dois homens “colados”; duas mulheres também unidas e, por fim, o terceiro tipo,
os andróginos, juntos e de sexo opostos.
Mas Zeus, o soberano do Olimpo,
observa-os e constata que se tornaram muito presunçosos, autossuficientes,
felizes. Preocupado e temendo que resolvessem escalar os céus e investir contra
os deuses, decide enfraquecê-los dividindo-os ao meio para que, na busca
desesperada por sua “outra” metade esqueçam do poder que possuem.
Acontece que, quando qualquer um
desses três tipos encontrava sua outra metade, ficava tão embasbacada e feliz
que não faziam mais nada a não ser pensar no ardor de se fundirem novamente:
enlaçavam-se com seus pares iguais e não se desgrudavam.
Ficavam inertes, pois
nada queriam fazer longe um do outro. Resultado: ao menos um, morria de
inanição (fome). E o que sobrevivia, tornava a buscar novamente uma outra
“metade”, fosse outro igual ou mesmo diferente.
Zeus, o ordenador do Cosmos,
tomado de compaixão, temendo que se dizimassem, mudou-lhes o sexo para a
frente, para que pudessem gerar novos seres.
Segundo esse mito, o amor entre almas
gêmeas ocorre quando se encontra no outro algo que seja igual, idêntico àquilo
que já se possui em si mesmo.
É curioso que nesse mito, o amor de homem para
homem seja valorizado como estando acima do amor homem-mulher. Isso porque o
amor entre dois homens iguais (homói) é de uma ordem de ideias (ideal) e interesses
comuns, e o grego hierarquizava o amor, colocando o amor espiritual acima do
amor físico, sensual, carnal.
Todos nós temos uma ou elas são aspectos das divindades?
Não há como afirmar a existência
de uma única alma gêmea. Somos polítropos, ou seja, somos muitos. Os homens, ao antropomorfizarem os deuses, ou seja, dar-lhes características humanas, não
fizeram mais do que retratar a si mesmos.
Os encontros e desencontros fazem
parte do que você denomina “aspectos das divindades”. E como são diversos esses
aspectos!
Há a divindade do erotismo (Afrodite e seu filho Eros), a divindade
do matrimônio (deusa Hera, patrona do casamento e dos amores legítimos), a
divindade da desordem, do caos, do bacanal, da orgia (Dioniso, o deus do vinho
e do êxtase) e etc.
Todos eles fazem parte de nossa psyché (Alma) e,
certamente, existem almas que, num determinado momento de nossas vidas, estarão
sendo “mais gêmeas” com a nossa alma que qualquer outra.
O que a nossa alma gêmea tem a nos ensinar e por que ela nos faz falta?
Se nossa alma gêmea tiver algo a
nos ensinar, certamente será sobre nós mesmos. Semelhante atrai semelhante
(essa é a 1ª Lei da magia, segundo Sir James Frazer em "O Ramo de
Ouro").
Ela nos faz falta porque Eros (o poder de união) é dos deuses mais
antigos e a tendência (do grego pathós) do ser humano é sempre se
unir.
É por isso que quando essa tendência se dirige a uma pessoa de forma
muito insistente, ela se torna uma patologia, ou seja, uma doença. E doença do
coração, da alma, só se cura com a lucidez da razão.
Há algo que possamos fazer para
encontrá-la?
Sem dúvida. Basta que estejamos
predispostos a isso. O grande poeta Hesíodo (600a.C), na obra “Teogonia”
esclarece que Zeus, o ordenador do Cosmos é kydistos.
Kydós (Vitória) é uma derivante
de Kleós (Glória). Num combate entre dois guerreiros, àquele no qual Zeus
encontraste o kydós (a marca da vitória) era destinado vencer, ou seja, o
vencedor já sabia que sairia vitorioso da batalha porque tinha, trazia a
vitória dentro de si.
Do mesmo modo, estamos na vida
como entidades livres, leves e soltas. À partir do momento em que acalentamos o
interesse amoroso, o desejo de união em nós, certamente isso será captado e
apreendido por alguém que esteja também desejoso de amor. Eis o segredo! Ou
melhor, não há segredo.
E sobre o amor platônico?
Para o senso comum, e assim está
assentado, o amor platônico é o amor ideal, perfeito e, portanto irrealizável.
Ao menos por um tempo muito longo. Explico: o amor platônico se dá no campo
mental, na idealização do ser amado. Acontece que tudo isso é muito lindo e
maravilhoso no campo das ideias mesmo.
Mas a realidade é que vivemos
aqui na terra, sujeitos às mudanças, aos humores e à corrupção de Chronos
(Saturno, o deus do Tempo). Somos perecíveis, enrugamos, envelhecemos, a
perfeição se esvai com o tempo.
Mas isso não significa, necessariamente o fim
do amor. Daí a necessidade de se ter maturidade para manter constância em
cultivar o Amor, não somente do corpo, mas sobretudo da Alma. E vale a pena.
luciene felix lamy
E-mail: mitologia@esdc.com.br
Whats: (13) 98137-5711
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