Sartre: Entre quatro
paredes (Huis Clos) - “O inferno são os outros”
Dentre os riscos de se deixar
pautar por valores alheios está o de viver uma vida destituída de sentido
pessoal. Ponderemos agora como o ser humano, enredado pela má fé, acaba por
delegar a terceiros a angustiante responsabilidade de decidir sobre sua vida.
Como piolhos, viver pela cabeça dos outros pode tornar nossa existência um
inferno. Mas afinal, quem são “os outros”?
O Filósofo existencialista
francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), além das famosas obras filosóficas (“A
Náusea”, “O Ser e o Nada”), escreveu romances, contos, peças teatrais e atuou
também como crítico literário e de artes.
Seu trabalho não está dissociado de
sua biografia: órfão de pai aos dois anos de idade, foi prisioneiro dos
nazistas durante a 2ª guerra mundial e ativista militante. Foi leitor voraz de
Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche, Espinosa, Bergson, Stendhal, Hegel e de
Husserl, entre outros.
Embora o cristão Sören Kierkegaard seja considerado
precursor do existencialismo moderno, o sartriano será ainda mais radical,
posto que ateu.
Até Sartre, considerava-se válida
a doutrina solipsista, ou seja, do que se tinha consciência era do “eu”
individual e essa formava o que entendíamos por realidade.
Mas ele irá afirmar
que antes mesmo de uma consciência intencional há, de fato, uma espécie de
vazio, como se nossa consciência fosse uma tábula rasa, uma folha de papel em
branco, um lugar onde repousa a liberdade absoluta e de onde, a partir daí as
escolhas serão conscientemente apontadas.
Suponhamos que nossa consciência
seja uma espécie de “ser em si” (é o que é) mas que ainda não é tudo. A toda
relação que essa consciência estabelecer denominaremos “ser para si”.
Logo, a
consciência está em branco, sempre se lançando ao exterior (ser para si),
construindo “sua” realidade. Ela não passa de um nada, não tem significado até
que alguma escolha seja feita.
Esse seria então o ser da
consciência humana: um nada que se projeta para se tornar algo: “A consciência
não é uma entidade “espiritual” pré-concebida, mas uma intencionalidade que não
é nada em si mesma, mas que tem de formar-se com o mundo no qual está”.
Sartre
surpreende, ao afirmar: “a existência precede a essência”, ou seja, não há
essência humana anterior a existência do homem. Para ele, “O homem [existe]
primeiro e somente depois ele “é” isto ou aquilo: é lançando-se no mundo,
sofrendo nele, lutando nele que aos poucos ele se define, e a definição
permanece sempre aberta”.
Se o homem se apresentou no mundo sem ser concebido
por algum projeto divino, cabe a ele produzir sua própria essência, será o que
fizer de si mesmo. Eis o primeiro princípio do existencialismo ateu.
Mas Sartre salienta que quando
nos abstemos da responsabilidade por nossas escolhas, estamos agindo segundo
aquilo que denominou “má fé” da consciência, ou seja, estamos nos isentando de
atentar para a liberdade que temos à nossa inteira disposição, de graça.
A má
fé consiste em fingirmos não ser livres e podermos então, debitar nossa
infelicidade ou fracasso à causas externas a nós (os pais, o “inconsciente
freudiano”, o ambiente, a personalidade indômita etc). Sartre chama isso de
covardia. Não sendo livres para deixar de ser livres, estamos, pois,
“condenados à liberdade”.
Esse “ser” construído através
daquilo que se escolhe (até mesmo quando não se escolhe já está se escolhendo)
pode ser explicitado também através da relação com os outros. Essa relação se
dá pela experiência do olhar, do corpo. O olhar do outro me objetiva, me torna
real.
O outro atesta minha existência e isso instiga e inquieta. Desencadeia uma crise de aceitação pois só
desejo ver refletido no outro o melhor de mim mesmo. Porém, o outro enxerga
mais do que gostaríamos, desconhece nossas motivações interiores.
Na peça teatral “Entre quatro
paredes” (1944), Sartre pondera-se sobre a questão da imagem e ilustra suas
ideias filosóficas. A fenomenologia do Outro e do “ser para outro” foi um dos
mais bem-acabados pensamentos de Sartre. A dialética humana de “ser um com o
outro” é central: ver e ser visto corresponde a dominar e a ser dominado.
Após morrer, três indivíduos vão
parar no inferno (não se trata do estereotipado inferno cristão, com diabinhos,
fornalhas etc.). Garcin, era um homem de letras. Pretendia ser um herói e foi
um covarde. Seu maior tormento é que suas novas companheiras desvendam sua
condição de covardia, que não pode ser mudada. É em vão que luta para fugir da
pecha de covarde.
Estelle é uma fútil burguesa que
ascendeu socialmente pelo casamento. Em nome do conforto, assassinou o bebê que
teve com o amante e vê este, tomado pelo desgosto, suicidar-se. Tenta
redimir-se atribuindo sua culpa ao destino. Deseja a paixão como forma de
escapar à realidade.
Inês é homossexual, funcionária
dos correios, agressiva, admite suas culpas. É a única que não procura se
desculpar e compreende estar no inferno. O ódio a alimenta; sádica, goza com o
sofrimento dos outros.
Não foram parar no inferno à toa:
cada um responde por um crime. Estão confinados numa sala, sem espelhos, sem
necessidade de se alimentar ou de dormir, por toda eternidade. São obrigados a
se ver através dos olhos dos outros; olhos esses que não teriam sido os
escolhidos para se conviver.
Vaidosa e egoísta, é patético o desespero de
Estelle por um espelho. Inês arregala os olhos para que ela possa se enxergar:
ela se vê, tão pequenina.... Tudo isso os incomoda bastante, pois não conseguem
enganar uns aos outros por muito tempo e, aos poucos vão se constrangendo cada
vez mais.
Inês tentará conquistar Estelle,
que a repudiará. Estelle, por sua vez, buscará a paixão de Garcin, que a
ignora. Inês, interessada em Estelle, jogará um contra o outro, explicitando as
faltas deploráveis de ambos; faltas essas que nenhum quer admitir.
Numa
convivência insuportável, Estelle, revoltada, tenta matar Inês, mas ela dá boas
gargalhadas: já está morta. Garcin tenta, inutilmente, convencê-la de que não é
um covarde. Não conseguindo, tenta se vingar amando Estelle diante de Inês.
Sem que possam sequer expiar suas
faltas, descobrem o horror da nudez psíquica que os outros lhes evidenciam.
Está revelado o verdadeiro inferno: a consciência não pode furtar-se a
enfrentar outra consciência que a denuncia, por isso: “o inferno são os
outros”.
“Os Outros” são todos aqueles
que, voluntária ou involuntariamente, revelam de nós a nós mesmos. Algumas
vezes, mesmo sufocados pela indesejada presença do outro, tememos magoar,
romper, ferir e, a contragosto, os suportamos.
Uma vez que a incapacidade de
compreender e aceitar as fraquezas humanas torna a convivência realmente um
inferno, o angustiante existencialismo ateu sartriano não nos deixa saída. Sem
o mínimo de boa-vontade, não há paraíso possível.
►
Saiba mais: Entre quatro paredes – Jean-Paul Sartre. Tradução: Alcione Araújo e
Pedro Hussak. 3ª ed. - Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007.
Luciene Felix Lamy - Email: mitologia@esdc.om.br
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