“O cúmulo da injustiça é querer passar por justo sem ser.” Platão
Ao tratar da sutil distinção entre um verdadeiro amigo e um mero oportunista, Plutarco (69-120 d.C.) nos leva a refletir sobre nossas próprias falhas, revelando o quão somos responsáveis por nos cercarmos de bajuladores, expondo-nos a riscos desnecessários.
Logo no início da obra, o autor chama a atenção para o fato de que é ao acalentarmos um excesso de amor-próprio – tão salutar quando em boa medida – que não fazemos um julgamento íntegro e imparcial sobre nós mesmos: "o amante é cego a respeito do que ele ama.", diz ele.
Superestimando nossos talentos, preparamos o terreno para as ações dos bajuladores. Esse embotamento é propício a que nos acessem: "cada um de nós é o primeiro e o maior adulador de si próprio.". Ansiosos pela confirmação de nossos dotes, regojizamo-nos a toda aprovação.
Plutarco ressalta que quem gosta de bajulação está perdidamente enamorado de si. O efeito nocivo disso abarca muito mais do que imaginamos: "supondo-se que a verdade seja divina e seja, segundo Platão, o princípio 'de todos os bens para os deuses e de todos os bens para os homens'", o bajulador é inimigo dos deuses e dos homens, pois nos ilude, tornando-nos cegos no que diz respeito às nossas virtudes e nossos vícios. Sabota o famoso imperativo "Conhece-te a ti mesmo".
Ele afirma que assim como os vermes penetram de preferência nas madeiras tenras e odoríferas, são as almas bondosas e generosas – no entanto narcísicas – que acolhem e nutrem a bajulação. E, o bajulador “não acompanha os indigentes, os anônimos ou os desprovidos de recursos (…)", por isso, os mais pobres tanto se orgulham dos amigos sinceros.
O sábio alerta que espreitar as ardilosas manobras dos bajuladores para apanhá-los em flagrante e impedi-los de nos prejudicar não é uma questão irrisória, pois com o passar do tempo, esses invejosos caluniadores envenenam e destroem reputação, amores, lares, sonhos, carreiras e outras amizades.
Enquanto o amigo quer bem ao amigo, o bajulador quer bem somente a si mesmo e, seduzidos por glória e poder, ocorrendo alguma indesejável alteração na roda da fortuna do bajulado, abandona-o rapidamente.
É prudente não esperar passar por reveses para descobrir quem possui um coração sincero e honesto e quem é falso e desonesto: "é preciso pô-lo à prova antes de recorrer a ele (...) não é após ter sido enganado, mas precisamente para não sê-lo, que devemos pôr à prova e desmascarar o bajulador".
Nobreza e dignidade caracterizam a verdadeira amizade que, além de somar prazer e encanto aos sucessos, alivia sofrimento, os embaraços das más fases. O amigo é, de fato, condescendente com o agradável e o útil e, é nessa vestimenta emprestada que o bajulador se insinua.
Assim como o ouro falso muito se assemelha ao verdadeiro, o bajulador imita a benevolência e a boa vontade do amigo, tenta parecer sempre simpático e divertido, além de evitar se opor às nossas opiniões.
Obviamente, não é porque alguém nos louva que devemos desconfiar, "(...), pois o elogio é tão conveniente para a amizade quanto a censura no momento oportuno.".
Aliás, será do amigo que virão francas repreensões, que devem ser ouvidas "(...) com confiança e acolhidas com reconhecimento, na convicção de que são necessárias (...).".
Amigo sincero nos elogia com prazer, mas nos censura a contragosto.
Considerando que, nem o prazer do desfrute do que há em comum, tampouco os elogios são critérios distintivos, é realmente difícil distinguir entre o amigo e o bajulador que exerce seu ofício com mais habilidade e talento, tomando parte em nossas emoções e adotando hábitos semelhantes aos da amizade.
Plutarco salienta que a vontade de ajudar, de prestar serviços e, de algum modo tornar-se útil a fim de favorecer a quem se preza, caminha na esteira da amizade: "a ponto de um amigo, diz-se, ser mais indispensável que o fogo e a água.".
O bajulador, "entregando-se aos bons ofícios, se dedica sem cessar a ostentar zelo, diligência e prontidão". Astuto camaleão, assim ele procede.
Uma amizade é fundamentada na semelhança de costumes, na identidade dos estilos de vida: "a similitude dos gestos e das aversões”. O bajulador sabe disso e se modela a fim de imitar àqueles de quem buscam ganhar confiança.
Corroborando a afirmação acima, cita ainda um poema em que diz que, "o velho, por seus discursos, sabe agradar ao velho, e a mulher à mulher, e a criança à criança, o doente ao doente e, quando o indigente encontra seu semelhante, sente menos a sua miséria".
O verdadeiro bajulador, diz Plutarco, imiscui-se em nossas atividades, partilha nossos segredos. Em função de sua postura amigável, conjugada com certa gravidade assumida diante de tudo o que é nosso, entregamos de bandeja a oportunidade de se instalar em nosso ego sedento de afeto.
Eles estão sempre atentos a transitar por entre afortunados, assediando-os. Desmascará-los exige que estejamos preparados para recusar o útil e agradável de suas palavras e atitudes encantatórias (abrindo mão de falso julgamento sobre nós mesmos) a fim de repelir o mal OU expor-nos a algum dissabor enquanto o pouparmos de um crivo mais lúcido.
Cônscio de que a franqueza é a linguagem característica da amizade, o bajulador nos ilude: "(...) afetam uma sinceridade que não é nem espontânea nem salutar (...)", e sabe usar dessa artimanha.
Como distinguir aquele que não é nem se tornou nosso semelhante e, entretanto, quer se passar por tal?
Primeiro, diz ele, é preciso examinar se seus princípios são duráveis e inabaláveis: "Se sua vida é regrada, e dirigida num mesmo e único plano”, isso requer tempo.
A psique do bajulador não tem consistência, pois ele confunde todos os valores morais: "ele leva uma vida apoiada na exigência de um outro e não na sua própria exigência". Com um, jura ser pacato; com outro, diz que adora sair. Isso o leva a, ora fazer-se de íntegro com uns; ora a compactuar injustiças com outros.
Embora uma boa autoestima seja algo benéfico, é um descompassado componente 'narcísico' que nos coloca na mira deles, pois não existe bajulador sem o prazer em ser bajulado.
Sua inconstância e volubilidade, no entanto, podem ser os indícios reveladores de sua natureza. Para percorrer essa trilha, antes, convém abrirmos mão da tolice que é a confirmação de juízos exacerbados sobre nós mesmos. A isso, um ego pueril sempre reluta.
PS: Em outubro, prosseguiremos com esse legado de Plutarco (II).
Matrícula: http://esdc-idc.webstorelw.com.br/products/curso-presencial-de-mitologia-greco-romana
9 comentários:
lindo post Lú !!
ainda bem que teremos parte II
bjs
JCW
Muito bom poder refletir sobre isso! Obrigada! Ana Laura
Nossa!
Como sempre... espetacular.
... e não é bajulação (rsrsrs)... esteja pois, certa, do quanto a admiro e estimo.
Bj,
Daniele.
Luciene, parabéns!
Sucesso!
Luis Chacon
Lu, tão novinha e já tão " inteligentA ".... estou adorando ler e te ler. Obga por não me deixar emburrecer. Beijo carinhoso... silvoca.
Olá, amiga Luciene.
Sempre escrevendo, sempre nos ensinando, sempre aprendendo mais ainda... Gosto do seu blog! Sempre mais e mais.
Abraços.
Excelente artigo!!! Fiz um comentário maior na sua publicação do cartaforense!!! Só lhe adianto que escrevi também sobre o assunto e a escassez de textos é desanimadora. Por isso, certamente você será uma referência. Muito obrigado!!!
Amigos leitores,
Muito me honra a postagem de todos vocês.
Realmente, a bajulação é muito mais nociva do que supomos.
Um grande abraço, com amizade estima,
lu.
O que realmente levarei, ou se o tudo que vai ficar ficará para uma boa causa, quando então o dia assim chegar, saberei sim que fiz em parte o melhor, ou em parte deixei de fazer, mas não posso esperar a perfeição, pois ela só está depois da vida, hoje busco aprender, assim como um pouco a cada dia, ver no outro a linda linha de coisas boas que cada um de nós temos, mas como não falar, onde deixar ficar no silêncio essa maneira gostosa de apresentar o seu melhor... gostei de vir aqui, mas ficarei em pleno silêncio, talvez outro dia gritarei não muito alto sobre algo bom assim.
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