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1 de mar. de 2011

A AMIZADE - em Aristóteles e em tempos de Internet

Daniel Silva Bernardes e Sofia Felix Lamy – Foto: Luciene Felix - 2007

“Entre os outros, escolhe como amigo o mais sábio e virtuoso.” Pitágoras
"Todas as grandezas desse mundo não valem um bom amigo". Voltaire.
"Os maus só têm cúmplices; os libertinos têm sócios de devastidão; o comum dos homens ociosos têm relações. Os homens virtuosos têm amigos." Voltaire
 
Tão antigo quanto o homem, o sentimento de amizade é uma das experiências mais nobilitantes, gratificantes e prazerosas que podemos desfrutar. Embora, ao longo da vida, amealhemos muitos amigos (de infância, faculdade, de balada, no trabalho, de condomínio, na academia, no jogo, na web etc.), uma amizade sincera e verdadeira, assim como o Amor, requer confiança, intimidade e constância que não coaduna com quantidade.

Se antes, diante da lembrança de um amigo, podíamos precisar até a gradação de importância em nossas vidas (foi excepcional ou razoavelmente meu amigo em tal época), nos atuais tempos virtuais (sites, blogs, redes sociais, sms, etc.) o conceito de amizade revela-se amplamente dilatado. Mas...

O que é um amigo? Como se inicia uma amizade? O que buscamos e o que as amizades nos proporcionam? O que é necessário à manutenção da amizade? Com quantos amigos fiéis podemos contar [e igualmente, podem contar conosco]? O que possibilita a amizade entre pessoas aparentemente desiguais [em poder, riqueza ou erudição]? Quando convém romper uma amizade?

Nos Livros VIII e IX de “Ética a Nicômacos”, o filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) se deteve a essas questões. A amizade, diz o estagirita, além de ser um sentimento extremamente necessário à vida é também uma forma de excelência moral.

De fato, ninguém deseja viver sem amigos e os ricos, importantes e poderosos são os que mais precisam: “(...) de que serve a prosperidade sem a oportunidade de fazer benefícios (...) aos amigos?”.

Ele afirma que uma disposição amistosa é a mais autêntica forma de justiça, chamando a atenção para o fato de que “quando as pessoas são amigas não tem necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam da amizade”. De fato, quantos litígios não seriam evitados: havendo amizade, não haveria alienação parental, por exemplo.

Um espelho que ajuda a tornarmo-nos melhores: “Para conseguir a amizade de uma pessoa digna é preciso desenvolver em nós mesmos as qualidades que naquela admiramos.” dizia Sócrates.

Dentre as dádivas de se ter amigos, Aristóteles cita a proteção na pobreza e noutros infortúnios, no quanto orienta os jovens a evitar os erros e ampara aos idosos, ressaltando que com amigos bons, pensamos e agimos melhor.

Amigo é semelhante, outro “eu” e uma amizade tem início com a manifestação de uma boa intenção natural diante de pessoas que nunca vimos, mas que julgamos boas ou prestativas. Havendo reciprocidade, estarão estabelecidos os pressupostos de uma amizade.

Ele argumenta que somente a amizade segundo a virtude é perfeita e que, por não existir somente um único tipo de amizade, pessoas más também podem ser “amigas” (apropriadamente, entre aspas). De outras pessoas más, de pessoas boas e até mesmo daquelas que não são nem uma coisa nem outra.

O “Pai da lógica” explica que dentre as coisas que merecem ser amadas estão “o que é bom, ou agradável, ou útil”.

Analogamente, afirma que uma afeição recíproca pode basear-se numa ou todas essas três qualidades: amor, prazer e interesse. Sendo assim, as pessoas amam o que parece bom, agradável ou, no caso do mero interesse, o útil.

Assim como um Amor, puro, sincero e verdadeiro, pode ter início por simples prazer e evoluir para uma plenitude mais intensa e profunda, o sentimento de amizade também pode começar de um jeito e evoluir para outro. Sentimentos se alteraram ao longo da convivência.

Útil é aquilo do que resulta n’algum bem ou prazer e, embora somente o bom e o agradável mereçam ser amados como fins [em si mesmo], são devido ao “útil” e ao “prazeroso” que nosso círculo de amizades se torna cada vez maior (a web promove essa elástica expansividade).

Denominamos “amigos” meros conhecidos, amigos de amigos e até simpáticos desconhecidos que interagem conosco na Internet. Com todo o demos (povo) conectado, nada mais democrático!

Nas amizades por prazer, não é pelo bom caráter que gostamos das pessoas espirituosas – sequer as conhecemos tanto – mas porque são afáveis, acolhedoras, aprazíveis: “as pessoas que amam por causa do prazer amam por causa do que lhes é agradável, e não porque a outra pessoa é a pessoa que amam, mas porque ela é útil ou agradável.”

O certo é que hoje fazemos amizades num clique. Mas amizades desse tipo são apenas “acidentais”: “um desejo de amizade pode manifestar-se instantaneamente, mas a amizade não pode”, diz o estagirita.

Tais ‘amizades’ se desfazem facilmente, pois se as pessoas não permanecem o tempo todo como no início (úteis para os interesseiros ou agradáveis para os que buscam prazer), a amizade arrefece, esfria e por fim, acaba porque a utilidade não é uma qualidade permanente. Como dissemos acima, prazeres e interesses mudam.

Amizades por interesse cessam tão logo o proveito acabe. Não havia estima sincera, mas empenho em se aproveitar: “as pessoas que amam as outras por interesse amam por causa do que é bom para si mesmas” diz Aristóteles.

Cultivar amizades exclusivamente por interesse é para pessoas mercenárias, narcisistas e egoístas, que só visam extrair proveito próprio.

Devido à possibilidade de se desfrutar prazeres e interesses comuns é que pode haver amizade entre pessoas dessemelhantes, inclusive más: “(...) pessoas más não gostam uma da outra a não ser que obtenha algum proveito recíproco” alerta. Digite “Muammar Khadafi (ou Gaddafi)” no Google Imagens e surpreenda-se com amizades inimagináveis. Ou não, como diria Caetano.

Amizades por interesse (tão ordinárias entre chefes de Estado e tão corriqueiras entre arrivistas e alpinistas sociais) e por prazer (tão comum entre os jovens e os volúveis) podem ser muitas, pois são igualmente inúmeras as pessoas agradáveis e/ou úteis: “e os benefícios que elas propiciam podem ser fruídos dentro de pouco tempo”. Observamos que pessoas inescrupulosas sabem ser agradabilíssimas quando lhes convém.

Ele chama a atenção para o fato de que, mais reticentes, as pessoas idosas priorizam o útil em detrimento do agradável ou prazeroso. E por sequer se acharem mutuamente agradáveis, preferem os que gozam de vigor e plenitude da qual possam tirar algum proveito.

Já nos mais jovens, o prazer está entre os maiores motivos de amizades, pois “vivem sob a influência das emoções e perseguem acima de tudo o que lhes é agradável e o que está presente”. São amorosos, mas também inconstantes, se tornam e deixam de serem amigos rapidamente, no mesmo dia até.

Sentir prazer na “com-vivência” é uma das características mais marcantes duma amizade. Além de agirem de modo parecido, pessoas boas também são reciprocamente úteis, agradáveis e prazerosas, ou seja, reúnem em si todas as qualidades que os amigos devem ter. Não necessariamente excludentes, bondade, dom de agradar e certa utilidade quando “se manifesta com vistas a objetivos nobilitantes” também se fazem presentes nas amizades deste naipe.

Amizades entre semelhantes em termos de excelência moral, entre aqueles que admiram a virtude e o comportamento ético um do outro, resistem à distância, ao tempo, às fofocas e calúnias: “não é fácil dar crédito ao que diz qualquer um acerca de uma pessoa que foi posta à prova durante muito tempo”. Essas amizades perduram. Porque bom caráter é algo duradouro.

Reza a lenda, que Sócrates ao ser indagado sobre o que Glaucon falava dele, perguntou ao interlocutor: Você já passou o que me vai falar pela peneira da verdade? Já passou pela peneira da bondade? Já passou pela peneira da utilidade? E com a sabedoria que atravessa séculos disse: “Se você não sabe se é verdade, bom ou útil... então, não somente peço que não me conte, mas imploro que esqueça!”. Um virtuoso jamais propaga maledicências.

Assim como não há como amar intensa e apaixonadamente várias pessoas ao mesmo tempo, não há como ser amigo íntimo de muitos: “ambas as partes devem adquirir experiência recíproca e tornar-se íntimas, e isto é muito difícil”, diz Aristóteles.

Nas amizades fundadas no amor e na admiração mútua, amigos rejubilam-se pelo sucesso do outro, vivenciam a alegria como se fosse própria (inexistente em português, a palavra grega para esse nobilitante sentimento é synkhairía - antônimo de inveja).

Nos entristecemos, nos sentimos abandonados e frustrados quando os “amigos” desdenham nossas vitórias. O sucesso de um semelhante só incomoda aos de espírito mesquinho.

Sabemos que somente os verdadeiros amigos se comprazem, se deleitam por nossas alegrias e são solidários diante de nossos fracassos.

Além de confirmar quem são os verdadeiros amigos, o sucesso é também uma forma de atrair interesseiros e angariar invejosos inimigos. Para ilustrar, relembro uma narrativa já postada (vide neste Blog "Os Sete Pecados Capitais"). Na Hélade, precisamente em Atenas, periodicamente os cidadãos eram chamados a, secretamente, escrever o nome de uma pessoa que gostariam que fosse expulsa da cidade num caco de cerâmica chamado “ostrakon”.

Se determinado indivíduo tivesse seu nome registrado muitas vezes, ele era simplesmente expulso da cidade. O período de ostracismo durava cerca de dez anos. Para quem se recusasse a pena era a morte.

Certa vez, um nobilíssimo e muito distinto cidadão ao flagrar seu nome sendo escrito indagou: “O que ele fez para que escrevas seu nome”? – o outro cidadão respondeu: “Nada. É que não suporto mais ouvir falarem tão bem dele”.

Fiéis e verdadeiros amigos indignam-se, manifestam-se e protestam com veemência quando testemunham um virtuoso amigo sendo alvo de injustiça. Sem titubear, defendem-no com vigor.

Indivíduos de tal alma são poucos e é natural que uma amizade assim seja rara. Requer tempo e intimidade para que se possa demonstrar que são dignas da amizade, para conquistar “o sentimento de que uma nunca fará mal à outra”, isto é, confiança!

Pessoas de mau caráter, amarguradas, maledicentes, ressentidas e indelicadas não parecem propensas a amizades e é provável que se ressintam da falta de verdadeiros amigos: “(...) ninguém pode passar seus dias com pessoas cuja companhia é constrangedora ou não é agradável, já que a natureza parece evitar mais que tudo o penoso e buscar o agradável”, diz o Filósofo.

Sendo assim, deve-se romper uma amizade quando uma das partes se distancia excessivamente da outra, até porque, se o acaso, “o destino decide quem vamos encontrar na vida. As atitudes decidem quem fica”.

Democrática par excellence, amizade verdadeira dá-se entre os que se assemelham e, pressupondo igualdade em termos de virtudes éticas, por mais díspares que possam parecer é acalentada entre ricos e pobres, eruditos e ignorantes, jovens e idosos, corinthianos, são paulinos, palmeirenses e santistas.

Somente os iguais em excelência moral compartilham de uma amizade perfeita. Basta, parafraseando Kant: O céu estrelado sobre nós, a Lei moral dentro de nós e, no caso das amizades virtuais, um teclado diante de nós.


Reais ou virtuais dedico estas linhas a todos meus virtuosos amigos,
desejando-lhes que os deuses os protejam e que os abençoem sempre.

11 comentários:

João Carlos Wanderico crosp 32141 disse...

from: aris@olimpo.edu
to: lufelix@blog.com

embora a chuva tenha atrapalhado minha banda larga, não poderia deixar de cumprimenta-la pelo excelente blog com temas relevantes, sinto-me bem representado aqui pelas ideias e temas explorados, continue sempre assim!!
Att
Aris...
parabéns

Luciene Felix disse...

Hummm, chuva é? Sei...
No Olimpo? Está bem.
Que bom que gostou Arizin!
Mas sabes que, muita coisa boa ficou de fora (eu já havia me estendido demais). Quem sabe numa próxima vez? Afinal, a gente nunca vai se separar.
Valeu JCW!
Beijos,
lu.
PS: Mas não vou esconder: meu eterno grande amor é seu Mestre! Kkkkk

Chutando a Lata disse...

Cara Lu, vejo que seus textos são de meu interesse. Todavia, eles me parecem extensos e confesso que os leio a conta-gotas. Segundo o meu juízo e preferência, acato a regra de que, quando não queremos trabalhar muito (por várias razões) escrevemos muito. De fato, fazer uma síntese é algo complicado, principalmente quando o assunto é tão nobre, como o da amizade.

Se puder lhe pedir algo, seria a síntese de algumas passagens do livro Paidea.

Um grande abraço e me desculpe a pressa.

Chutando a Lata disse...

Depois que li o texto, fiquei pensando se o mesmo não estaria preso ao seu tempo. Notei que coisas simples e mundanas como são os nossos melhores amigos que nos trairão não constam das divagações aristotélicas.

Luciene Felix disse...

Estimado amigo,

Extensos, né? E olha que tento condensá-los ao máximo.
Pô amigo, escrever dá trabalho, rs.
A Paidéia, de Werner Jaeger, é obra de grande envergadura.
Por sorte, estou estudando-a no momento. Dê uma olhada em "Ética e Retórica" (abaixo), há algo dele.

Não creio que o texto esteja datado amigo: confira na íntegra (nos Livros VIII e IX de "Ética a Nicômacos"). Para Aristóteles, os melhores amigos são virtuosos, possuem excelência moral, jamais nos trairiam.

Isso seria mesmo um contrasenso. Na remota hipótese disso acontecer (desconfio que Aristóteles creditaria o erro de juízo a nós mesmos), cabe romper a amizade imediatamente.

Nem se desculpe pela pressa amigo, fico é muito feliz e grata por sua postagem por aqui.
Bjs,
lu.

Cesar disse...

Interessante a palavra synkhairía e, se me permite um pitaco, se a inveja cega obscurecendo os pensamentos, seu antônimo para nós, que não temos uma palavra específica, pode ser luz então, né?.
E aproveitando, quero dizer,
beeem legal sua narrativa sobre Minos e o Minotauro, que você me indicou, estou escutando as outras também, grato. Ainda quero saber mais sobre essa história, isto é, sobre o príncipe Teceu e o que o motivou a entrar no labirinto, mas aguardo com paciência uma oportunidade,
Um abraço,
Cesar

Luciene Felix disse...

Olá Cesar,

Perdoe-me por estar escrevendo-lhe somente hoje amigo. Estava muito atarefada, ajudando meu Amor a ciceronear professores de outros países. Mas agora, estou mais tranquila.

Sim, LUZ, sem dúvida.

Muito interessante o Mito de Minos. A civilização cretense é a mais antiga da Grécia.

Quanto ao que tenha motivado Teseu, creio que tenha sido, primordialmente, o anseio humano em ascender ao Olimpo. Entre os imortais e os meros mortais, há somente uma alternativa: tornar-se herói. Requer coragem (alké).

Beijos,
lu.

Ângelo disse...

Olá, primeira vez que venho a teu blog e li este artigo sobre amizade.
Eu creio que a maioria das pessoas são más e você?
Um trocadilho.

Luciene Felix disse...

Pois sinta-se muitíssimo bem-vindo Angelo!

Sempre creio que o copo está metade cheio. Acho que nunca vou morrer de sede, rs.

Um grande abraço e brigadíssima pela visita.

Bjs,
lu.

Ângelo disse...

Obrigado pelas boas-vindas.
Não creio em nada que seja semi-cheio ou semi-vazio, mas, você deu seu ponto-de-vista. Bacana.
Ou o copo está cheio, vazio ou com algo dentro (incompleto).
Já daria um tema para filosofar.
Bjs.

Gean disse...

O amigo é um parente escolhido!
É curioso como sentimos vergonha(quando ele está envolvido em uma situação que envolve este sentimento) por um amigo, tanto quanto sentimos por um filho!

Beijos amiga.

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Eis que a Sabedoria reina, mas não governa, por isso, quem pensa (no todo) precisa voltar para a caverna, alertar aos amigos. Nós vamos achar que estais louco, mas sabes que cegos estamos nós, prisioneiros acorrentados à escuridão da caverna.

Abordo "O mito da caverna", de Platão - Livro VII da República.

Eis o télos (do grego: propósito, objetivo) da Filosofia e do filósofo. Agir na cidade. Ação política. Phrônesis na Pólis.

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