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2 de ago. de 2009

Freud e a busca pela felicidade


Sigmund Freud (1856-1939), em seu opúsculo “O Mal Estar na Civilização”, afirma que o homem anseia pela felicidade e que esta advém da satisfação de prazeres. Essas buscas pelas coisas que nos fazem bem provêm da satisfação (de preferência repentina) de necessidades represadas em alto grau. Ganhar na mega-sena será diferente para um endividado ou um milionário. O enfermo anseia por algo que uma pessoa saudável nem pensa.

Tornarmo-nos pessoas felizes é um impositivo do princípio do prazer que trazemos desde a origem e para o “pai” da psicanálise, isso não pode ser plenamente realizado. Mas nem por isso devemos [ou podemos] deixar de empreender esforços para nos aproximarmos ao máximo desse objetivo.

Uma situação de júbilo, inicialmente intenso (tal como o sucesso numa árdua e arrebatadora conquista amorosa) pode até se prolongar, mas, após certo tempo, ela produz somente um sentimento de contentamento. A felicidade e o prazer proporcionados por tantos bens de consumo se esvaem tão logo o adquirimos: “Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas”. Embora sejam diversos os meios para alcançarmos a felicidade, é ainda mais fácil experimentarmos a infelicidade.

Significativas fontes de sofrimento são: a) testemunhar a irreversível decrepitude e a certeza da mortalidade de nosso corpo; b) ameaças do próprio mundo externo, cuja destruição, seja fruto do poder superior da natureza ou da violência de nossos semelhantes sempre nos assombram e, c) a maçante tarefa de nos relacionarmos com os outros, no seio da família, em sociedade e no Estado.

As “lamparinas do juízo” nos forçam a reconhecer essa impotência: não há muito a fazer em relação às duas primeiras fontes de angústia. Só nos resta à sensatez de nos submetermos ao inevitável: “Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização”. Conviver pode ser complicado e nisso talvez consista a maior fonte de infelicidade (lembremo-nos do nosso artigo já publicado aqui, “Sartre – O inferno são os outros”).

Freud diz que não é de admirar que os homens tenham se acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade: “Na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio de realidade”. Assim, um indivíduo pode pensar ser feliz, simplesmente porque sobreviveu ao pior.

Espanta-nos a resignação de tantos desafortunados que, habituados à luta de evitar ainda mais sofrimentos, não priorizam obtenção do prazer. (Mal) disfarçadamente, se comprazem ao relatar um caso de pandemia, duma falência, da queda de um avião e proferem de cor a máxima: “antes pobre com saúde...”. Desconfiados, ao se depararem com um rico saudável, sentenciam: não deve ser feliz!

Evita-se sofrimento mantendo distância das pessoas, se isolando. Mas a felicidade passível de ser alcançada assim é apenas a da quietude. Não convivem. Freud aponta o que considera mais plausível: “tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência [entenda-se, trabalho], passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana”. Eis a razão pela qual a civilização tanto dignifica o trabalho: estamos com todos, para o bem de todos.

Considerando que o sofrimento é sensação e que ele só existe na medida em que o sentimos, o estudioso da psyché (alma) verifica como o uso de prazerosas substâncias que alteram a percepção (álcool ou outro tipo de droga) pode constituir um “amortecedor de preocupações”, um precursor de felicidade. É justamente por deter qualidades tão apreciáveis que o uso desmedido de psicotrópicos é perigoso e capaz de causar grandes danos à humanidade, pois desperdiçam energia que poderia ser “empregada para o aperfeiçoamento do destino humano” (confira meu vídeo sobre esse tema nesse blog).

Eficazes no combate à contrariedade da satisfação dos instintos estão os “agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade”. Dessa forma, o ego, através da sublimação, sujeita os desejos irrefreáveis, doma os instintos mais selvagens, a agressividade e a tendência à barbárie. Exemplos desses “agentes psíquicos superiores”, ordenadores, são as leis, os direitos e deveres, o respeito à ordem e a consideração aos nossos semelhantes.

Trabalhar faz bem: “a alegria do artista em criar ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial”. Para Freud: “Obtém-se o máximo [de felicidade] quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual”, que considera “mais refinadas e mais altas”.

Infelizmente, diferente da satisfação de nossos impulsos mais primitivos e grosseiros, essa salutar felicidade pela realização de um trabalho é acessível a poucas pessoas: “pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de ser comuns”. São àqueles que não trabalham somente pela remuneração.

Mesmo um trabalho profundamente gratificante não garante proteção contra as vicissitudes inerentes à vida; e é impossível que, dessa forma, alguém consiga se precaver contra toda forma de sofrimento. Mas ao nos orientarmos para uma espécie de “vida interior”, buscando alento em nossos processos psíquicos internos, intentamos nos tornar independentes, ao máximo possível, das pressões do mundo externo.

Outra forma de felicidade é a que nos proporciona o fruir das ilusões. A beleza é uma promessa de felicidade e a civilização não pode dispensá-la. Quando, em lazer, contemplamos alguma obra de arte (música, literatura, cinema, teatro, shows, exposições, parques e mares), experimentamos uma “suave narcose”. Mas embora isso nos afaste momentaneamente dos problemas, não é forte e constante o suficiente para nos fazer esquecer as preocupações reais.

Dentre os perigos de não se aceitar a realidade, rompendo as relações com ela, está o de nos tornarmos loucos. Assim, na busca cega pela felicidade, rejeitamos a realidade, recriamo-la a nosso gosto, eliminando seus aspectos mais insuportáveis.

É certo que, em algum grau e sob algum determinado aspecto de nossa vida, agimos como o paranóico que “corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade”. A linha que separa a atitude de quem vê o mundo através de lentes cor-de-rosa da de um ‘louco’ é tênue. O louco é “alguém que (na maioria das vezes) não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio”. Talvez seja por isso que hoje em dia, com a adesão de muitos, inúmeros absurdos nem sejam mais considerados “coisas de louco”.

Freud aponta a religião como um típico exemplo de como a loucura pode ser legitimada, bastando ser compartilhada, por um número significativo de pessoas. Intenta-se obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade. A religião, para ele, restringe o jogo de escolha e adaptação, pois impõe, igualmente para todos, como sendo o caminho certo e seguro, tanto para a felicidade quanto como proteção para todo e qualquer sofrimento: “Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante – maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual”.

O fervor da fé, presente no coração de uma pessoa extremamente religiosa pode poupá-la da dor e do sofrimento? Quando um crente/temente, acometido por alguma desgraça se vê obrigado a creditar a causa de sua angústia e desespero a algum insondável “desígnio” de Deus, nada mais faz senão admitir que tudo o que lhe restou de consolo foi essa sua submissão incondicional ao imponderável. Para o psicanalista, se o ser humano estiver lucidamente cônscio de que é passível de vir a se deparar com essas adversidades, pode muito bem dispensar fundamentalismos.

Amar e ser amado! O amor também é um caminho para a felicidade. Mas, dentre os perigos do amor, está a vulnerabilidade à qual nos sujeitamos: podemos perder nosso objeto de amor ou o sentimento de amor que o amado nutre por nós pode acabar. Mesmo assim: “Há porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez?” indaga o analista da psyché.

É ilusão imaginarmos que tenhamos tudo o que desejamos: “A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo”. Resta descobrir, por nós mesmos, de que modo podemos ser felizes, ponderando sobre quanto de satisfação real podemos esperar do mundo exterior, quanta força dispomos para alterar o mundo que nos cerca a fim de adaptá-lo aos nossos desejos e também de adequar nossos desejos a ele.

Nessa empreitada, ainda mais relevante que as circunstâncias externas, será nossa constituição psíquica. Embora sejamos multifacetados (e estejamos sempre em mudança ao longo da vida), o indivíduo predominante erótico, por exemplo, priorizará seus relacionamentos emocionais. Os narcisistas, solitária e auto-suficientes, encontrarão mais satisfação em seus processos mentais internos. Não por acaso, quase sempre são muitíssimo bem sucedidos profissionalmente. Já o homem de ação, indômito, jamais abandonará o mundo externo, palco ideal para por em teste suas forças.

Freud nos ensina que, assim como um negociante cauteloso não cometeria a insensatez de empregar todo seu capital somente num tipo de negócio, a própria sabedoria popular nos alerta a não depositar nossa expectativa de felicidade e de satisfação numa única aspiração. Embora assegure que “Não existe regra de ouro que se aplique a todos”, alguns caminhos nos levam à felicidade. Acalentemos um amor, zelemos pela família, ocupemo-nos com prazer, apreciemos (com moderação!) as "suaves narcoses", cultivemos sinceras amizades e, para que não sejamos dilacerados, resignemo-nos ao inescrutável propósito maior, no caso de tudo falhar.


1 de jul. de 2009

A violência da Justiça - Heráclito / Horkheimmer


"A Guerra é pai de todas as coisas - de uns faz deuses, de outros homens, de uns livres, e de outros, escravos". Filósofo grego pré-socrático, Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.).

 
Tanto em nossa razão subjetiva (fruto de um lógos instrumentalizador, que recolhe e ordena, classifica, infere e deduz segundo a utilidade de nossos próprios interesses, lucros e vantagens individuais ou coletivos) quanto nossa razão objetiva (outro lógos, de reflexão e discernimento que abarca e perpassa o pensar-dizer possível, englobando a totalidade, o "todo") associamos Justiça à Paz, tomando-os quase por sinônimos.

Acessar esses lógos (razões subjetiva/objetiva) é dispor de agentes de compreensão ética e moral. Lembremo-nos que a razão subjetiva, relativa ao sujeito, está bem definida quando o sofista Protágoras proclama que
"O homem é a medida de todas as coisas, das que são porque são e das que não são, porque não são".
Já a razão objetiva impõe a ideia de que um objetivo possa ser racional por si mesmo, independente do sujeito, como intentaram os criadores dos grandes sistemas filosóficos tais como Platão, Aristóteles, a escolástica e o próprio idealismo alemão. (Vide Horkheimmer).

Uma vez evidente essa apreensão dualística da ratio, do lógos, ponderemos sobre o emprego da violência.


A palavra "violência" vem do latim e significa força. E, "violentus" é aquele que impiedosamente, faz uso exagerado da força. Sendo assim, a palavra violência aderiu à violação, dilaceração, brutalidade, desmedida. Uma vez que a chocante violência física é a mais aparente, automaticamente, associamos violência a sangue e isso nos causa aversão.

Curiosamente, mesmo nas representações mais arcaicas da deusa grega, da sabedoria e justiça, Palas Athena, identificamos a imagem de uma lança (ou de uma espada, numa versão posterior). Qual é o significado da presença de um objeto que simboliza a força da guerra e da violência, nas mãos da guardiã da Justiça?

A apresentação de uma arma, instrumento de violência, se opõe ou, ao menos de imediato, não coaduna com Paz. Mas, contrariando nossos sentimentos mais compassivos, podemos atinar a razão de sua existência como ferramenta necessária para se estabelecer, restaurar e manter a Paz. A força (representada pela lança ou a espada), empregada com justa medida pela Justiça é condição sine qua non para que impere a Paz. Sabemos que sem Justiça a paz não é possível, e ela têm de se impor com firmeza.

Filha do soberano Zeus, Athena é zelosa guerreira. Gestada na cabeça do pai, enquanto não nasce, as dores de cabeça do ordenador do Cosmos são inevitáveis. E assim como nasce (miticamente) do lógos do pai, graças ao empenho do mestre da téchne, Hefestos, também a Justiça vem à luz graças aos operadores do direito.

Vale dizer, Athena é patrona de um tipo muito específico de violência. Trata-se do inevitável combate feito com inteligência e astúcia, motivado por um ideal, um valor honroso. Guerreia somente enquanto último recurso, quando se torna insuficiente a resolução diplomática de qualquer polêmica. A força para a batalha deve ser encarada como derradeira e importante argumentação na defesa da justiça quando todas as outras vias falharam.

Como dito acima, assim como atinamos à plausibilidade de dois modos de apreensão pela razão (subjetiva e objetiva), inferimos haver também modos distintos de se conceber e de fazer uso da força/violência: o legitimado e o desvirtuado.

A natureza (physis) é caprichosamente violenta em sua dýnamis (potência). Nos assola a violência dos mares, dos ventos e até das paixões, pois, na ousía (essência), não somos poupados do que há de natural em nós. A própria criação da vida de um novo ser não se origina sem determinada violência: o vitorioso e singular espermatozóide que engendrou a alma (psyché) de que quem lê essas linhas, teve forças, lutou e muito para romper a resistente barreira da parede de um óvulo.

Origem, florescimento, plenitude, degeneração e decrepitude (geres, a velhice maldita) até o inexorável fim. Quando lhe é de direito, o sol invade a escura madrugada e, precedido pelo espetáculo da aurora, avança impondo sua luz; tal qual o inverno atual a suceder o outono, que naturalmente acata o fim desse seu ciclo.

Temos também na música, um dos mais belos, inefáveis e transcendentais exemplos do bom uso da violência. É extasiante constatar o paradoxo de que através do emprego de certa violência, aplicada com a intensidade adequada e no devido kayrós (tempo oportuno) um compositor extrai as mais belas melodias: estendendo as cordas com virtuose, deleitando-nos a alma.

Vislumbra-se uma muitíssimo bem orquestrada harmonia (sophrosyne): a "visível", passível de ser recolhida pela razão subjetiva, do sujeito; bem como a "invisível", recolhida por uma razão objetiva, pontilhando todo o Cosmos (ordem) da galáxia em que habitamos. Observe que nosso planeta Terra se situa entre as mitológicas divindades/planetas Vênus (Afrodite) e Marte (Ares) -, também subjetiva e objetivamente, equilibramo-nos entre o amor e a guerra.

Ainda que nossa razão subjetiva não tenha alcançado o "Ser em si e por si" de uma razão objetiva, sabemos que a reunião das ações que empreendemos como pessoas individuais formam o todo coletivo, podendo culminar na aparente totalidade desse mundo em que vivemos.

Ao furtar-nos à consciência da necessidade do emprego da boa violência/força, abdicando de nossa responsabilidade na obrigação de Pensar e agir, cerceamos, tolhemos nossa liberdade. Se, fracos, paralisamo-nos pelo temor de sermos removidos de nossa preciosa (embora cada vez mais frágil) zona de conforto e, como avestruzes, enterramos a cabeça no chão, promovemos indesejada violência: a injustiça, fruto da omissão.

Devemos atentar ao fato de que, ao nos esquivarmos dos combates, nos omitindo numa chamada à ação, sobretudo política, estamos sendo coniventes com os desmantelos de nossos dirigentes. Essa (falta de) atitude erige o pântano no qual chafurdamos: numa política (pólis) juridicamente deteriorada e pútrefa.

Muitas vezes, nas ações empreendidas em nossa vida particular e pública, optamos por preservar o status quo, manter a paz e a harmonia a qualquer preço, encobrindo uma situação sabidamente injusta. Sobrevém-nos uma pseudo paz, a um custo muito mais elevado (sim, valoramos!) do que se perseguíssemos a verdadeira Paz indissociável da Justiça. Livres, ao escolhermos isso, fomentamos mentiras deslavadas, premiamos a perfídia, perpetramos injustiça.

Numa passagem da Odisséia, narra Homero, que o ardiloso rei de Ítaca, Ulisses (Odisseu) apresenta-se ao gigante ciclope chamado Polifemo, dizendo que seu nome é "ninguém". Ameaçadoramente acarinhando a própria barriga, prontamente o ciclope assegura: "pois de ninguém será o meu jantar!". Num arremesso certeiro, Ulisses, atinge em cheio o olho de Polifemo. O filho de Poseidon, cego e desesperado, aos brados, exige do pai que o vingue, dizendo ao deus dos mares que quem o atingiu foi "ninguém":
"O nome dele é ninguém! Procure ninguém."
Recentemente, o Presidente de nosso Senado, Sr. José Sarney, afirmou que: "Ninguém vai acobertar ninguém". E que "Ninguém vai evitar que qualquer um seja punido como deve ser". Como a astúcia pode ser vil: é impossível encontrar
"ninguém".
Eis o bom combate. Não devemos promover a barbárie, empunhando lanças ou espadas. Mas violência não é (somente) sangue, portanto, sejamos fortes e corajosos o suficiente para que, em todos os âmbitos (público e privado), manifestemos nosso desejo de que a Justiça seja assegurada.

Não vivemos no melhor dos mundos, talvez nunca tenhamos vivido mesmo, mas não é justo que, acovardados, neguemos a nós mesmos o direito de conquistá-lo. Um mundo mais harmonioso, igualitário, respeitoso, de Paz.


 
Dedico esse artigo à Deputada Mara Gabrilli que, tetraplégica, luta pela inclusão dos deficientes. Um exemplo de como ser político, do agir na pólis. Homero (Ilíada e Odisséia) , o maior aedo/poeta que a humanidade conheceu, era cego.

4 de mai. de 2009

Justiça ou Vingança? Defesa de Shilock por Rudolf Von Ihering


Por isso, para que possa contar com a poderosa combatividade da Justiça, todo mortal deve encarar a Medusa, símbolo de sua própria vaidade, personificação da decadência espiritual.

Em inúmeros processos litigiosos, o que menos está em jogo é o papel moeda. Tanto que muitos optam por doar todo o ganho da causa a alguma instituição de caridade, deixando bem claro que não estão sendo movidos pela ganância do dinheiro.

Nem por isso furiosa e cegamente deixam de perseguir algo que prezam: o valor moral da dor infringida à alma (psique). Aviltados em sua dignidade, atingidos na honra que trazem no peito (timós), no caráter, na personalidade, exige-se reparação, clama-se por Justiça!

Justiça ou vingança? Os antigos gregos dispunham de um teste infalível para discernir de qual dos dois se tratava.

Antes de discorrer sobre isso, retornemos ao tribunal do dramaturgo inglês William Shakespeare em “O Mercador de Veneza”, pois não há como não se apiedar pelo desfecho do personagem do judeu Shylock, na referida peça teatral (veja o artigo AQUI).


O jurista alemão Rudolf Von Ihering (1818-1892), em seu clássico opúsculo “A Luta pelo Direito” (de onde recorto somente a questão relativa à peça) insurge-se contra a covardia da astuta sentença aplicada a Shylock: “(...) uma vez admitida [a validade da letra], a eficácia do título não deveria ter sido frustrada por um ardil infame quando da execução da sentença. (...) todos concordavam em que o direito estava ao lado do judeu. E, imbuído duma confiança inabalável no direito universalmente reconhecido, Shylock recorre à Justiça. (...) vencedor, completamente seguro do seu direito, quer realizar aquilo a que a sentença o habilitou, o mesmo juiz que solenemente proclamou esse direito, frustra o mesmo por uma objeção, uma artimanha que de tão desprezível e vil não merece sequer uma refutação séria. Será que existe carne sem sangue?”

Embora não deixe de render homenagens à grande heroína da peça, referindo-se à ardilosidade de Pórcia, Ihering prefere “não recomendar à juventude dedicada ao estudo do direito que frequente sua escola”.

E prossegue: “se quiséssemos submeter a mesma à crítica do jurista, este só poderia concluir que o título de Shylock era nulo, por conter uma disposição contrária à moral; por isso mesmo o juiz deveria ter-lhe negado validade desde logo. Se não o fez, se apesar de tudo o 'sábio Daniel' reconheceu a eficácia do título, usou ele dum estratagema miserável, cometeu uma rabulice lamentável, quando recusou ao homem a quem tinha concedido o direito de cortar uma libra de carne dum corpo vivo a faculdade de derramar o sangue indissoluvelmente ligado à mesma”.

Noutro esclarecedor exemplo, Ihering diz que é como se alguém autorizasse a passagem por um determinado caminho e depois reclamasse das pegadas. Ora, caminhar não pressupõe deixar pegadas?

Mesmo reconhecendo que a fraude fora cometida por motivos humanitários, Ihering indaga “deixará a justiça de ser injusta quando inspirada num móvel humanitário?” Vejamos.

Justiça é um sentimento que em sua abstração abarca harmonia, simetria e equidade. Ihering foi muito feliz ao comparar o sentimento de justiça ao sentimento de amor, afirmando que sua força jaz no sentir.

Sobre o sentimento que uma injustiça acarreta, diz que “quem nunca sentiu essa dor, em si mesmo ou em outrem, ainda não compreendeu o que é o direito, mesmo que saiba de cor todo o corpus juris. Não é raciocínio, mas só o sentimento que pode dar-nos essa compreensão, e é por isso mesmo que o sentimento de justiça costuma ser designado com toda razão como a fonte psicológica primordial do direito”.

Plenamente de acordo com sua argumentação, raciocino que o sentimento de compaixão é capaz de transmutar injustiça em justiça. Lamentável que não tenham prosseguido nesse sentido quando foi proferida a dura sentença de Shylock.

Regressemos à Grécia arcaica para ponderar sobre a causa do judeu. As Górgonas são três irmãs (Medusa, a dominadora; Euríale, a errante e Esteno, a violenta) que simbolizam os inimigos interiores que temos de evitar.

São deformações monstruosas da psique nascidas do desvirtuar de três pulsões humanas: sociabilidade (Esteno), sexualidade (Euríale) e espiritualidade (Medusa). Como a perversão espiritual prevalece sobre as demais, Medusa é conhecida como rainha das Górgonas.

A perversão da pulsão espiritual, por excelência, é a vaidade (imaginação exaltada em relação a si mesmo) cujo símbolo é a serpente. Inúmeras serpentes coroam Medusa.

Sua cabeça foi presente do herói Perseu à deusa grega da Sabedoria e Justiça Palas Athena, quem o auxiliou em combate, emprestando-o seu escudo, para que não a encarasse e ficasse estagnado.


Para derrotar a Medusa, foi necessário que o herói a surpreendesse enquanto dormia, pois o homem somente é lúcido e apto ao combate espiritual quando a exaltação de sua vaidade não está desperta.

Arma muito cobiçada, mesmo morta, a cabeça da Medusa continuou mantendo seu poder imobilizador. O temido adorno foi então incrustado na égide (proteção intransponível, peitoral feito de couro de cabra) da patrona da Justiça, Athena.

Como Shylock se enxergaria diante de algo que refletisse a imagem verídica das coisas e dos seres, que permitisse o “conhecer a si mesmo” com toda clareza, em que o homem se vê tal como é, e não como imagina ser?

No frontispício do templo de Apolo (deus da harmonia, irmão de Athena), na cidade de Delfos, leem-se as palavras que resumem toda a verdade oculta dos mitos: “conhece-te a ti mesmo”.

A única condição do conhecimento de si mesmo é a confissão das intenções ocultas, que, por serem culpáveis, são habitualmente maquiadas pela vaidade (por um clamor de justiça falso, pois sem mérito, infundado).

A inscrição reveladora significa, portanto: desmascara tua falsa razão, tua desmedida (hýbris) ou, o que dá no mesmo, aniquila o ódio proveniente de tua vaidade.

Faz-se necessário a clarividência, o amor, a compaixão, o inverso do funesto egoísmo que ninguém consegue confessar a si mesmo, nem suporta a visão paralisante.

Athena é a deusa da combatividade espiritual (as três manifestações da elevação espiritual são a verdade, a beleza e a bondade). O sentimento de amor pela verdade é a condição para ascender ao conhecimento de si e, em conseqüência, para desfrutar a harmonia (Apolo), a sapiência e justiça (Athena).

O télos (propósito, objetivo, finalidade) é muitíssimo relevante, daí a ruína de Shylock. A deusa da Justiça prioriza o sentimento de humanitarismo: “a compaixão é a parte mais bela da Sabedoria”, profere ela com austera solenidade.

Convidando os mortais a reconhecerem a culpabilidade advinda da agudeza do olhar de Medusa, obriga-os a recuar à luta contra a mentira essencial, a mentira subconscientemente desejada, o exaltado desejo de vingança, o recalcamento, as falsas razões.

Somente assim têm-se certeza de que a reivindicação não oculta outra intenção. Ante essa prova, quem recorre a Athena na busca por Justiça tem somente duas possibilidades: contar com sua proteção, certeza da Vitória (deusa Niké que sempre acompanha sua lança, sua espada) ou petrificar-se em seu manifesto ódio, pois a vingança é de uma fealdade aterrorizante.

Todo esse legado mitológico pode ser resumido numa palavra: limite. Ora por comungar da Justiça, ora por não alcançar esse “sentir”, é justamente contra isso que o ser humano empreende toda sua luta, pois, “limite” compromete justamente, nosso bem mais perseguido e precioso: liberdade.

Quando ultrapassamos limites, a dor e a deformidade (tanto física quanto moral) evidenciam nossa derrota: “Quod licet Jovi, non licet bovi” (O que é permitido a Júpiter [Zeus] não é permitido a um boi).

Animais e racionais, participando de ambos, nem sempre a luta é digna. Em todo caso, é eterna.

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Eis que a Sabedoria reina, mas não governa, por isso, quem pensa (no todo) precisa voltar para a caverna, alertar aos amigos. Nós vamos achar que estais louco, mas sabes que cegos estamos nós, prisioneiros acorrentados à escuridão da caverna.

Abordo "O mito da caverna", de Platão - Livro VII da República.

Eis o télos (do grego: propósito, objetivo) da Filosofia e do filósofo. Agir na cidade. Ação política. Phrônesis na Pólis.

Curso de Mitologia Grega

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As exposições mitológicas explicitam arquétipos (do grego, arché + typein = princípio que serve de modelo) atemporais e universais.

Desse modo, ao antropomorficizarem os deuses, ou seja, dar-lhes características genuinamente humanas, os antigos revelaram os princípios (arché) de sentimentos e conflitos que são inerentes a todo e qualquer mortal.

A necessidade da ordem (kósmos), da harmonia, da temperança (sophrosyne) em contraponto ao caos, à desmedida (hýbris) ou, numa linguagem nietzschiana, o apolíneo versus o dionisíaco, constitui a base de toda antiga pedagogia (Paidéia) tão cara à aristocracia grega (arístois, os melhores, os bem-nascidos posto que "educados").

Com os exponenciais poetas (aedos) Homero (Ilíada e Odisséia), Hesíodo (A Teogonia e O trabalho e os dias), além dos pioneiros tragediógrafos Sófocles e Ésquilo, dispomos de relatos que versam sobre a justiça, o amor, o trabalho, a vaidade, o ódio e a vingança, por exemplo.

O simples fato de conhecermos e atentarmos para as potências (dýnamis) envolvidas na fomentação desses sentimentos, torna-nos mais aptos a deliberar e poder tomar a decisão mais sensata (virtude da prudencia aristotélica) a fim de conduzir nossas vidas, tanto em nossos relacionamentos pessoais como indivíduos, quanto profissionais e sociais, coletivos.

AGIMOS COM MUITO MAIS PRUDÊNCIA E SABEDORIA.

E era justamente isso que os sábios buscavam ensinar, a harmonia para que os seres humanos pudessem se orientar em suas escolhas no mundo, visando atingir a ordem presente nos ideais platônicos de Beleza, Bondade e Justiça.

Estou certa de que a disseminação de conhecimentos tão construtivos contribuirá para a felicidade (eudaimonia) dos amigos, leitores e ouvintes.

Não há dúvida quanto a responsabilidade do Estado, das empresas, de seus dirigentes, bem como da mídia e de cada um de nós, no papel educativo de nosso semelhante.

Ao investir em educação, aprimoramos nossa cultura, contribuimos significativamente para que nossa sociedade se torne mais justa, bondosa e bela. Numa palavra: MAIS HUMANA.

Bem-vindos ao Olimpo amigos!

Escolha: Senhor ou Escravo das Vontades.

A Justiça na Grécia Antiga

A Justiça na Grécia Antiga

Transição do matriarcado para o patriarcado

A Justiça nos primórdios do pensamento ocidental - Grécia Antiga (Arcaica, Clássica e Helenística).

Nessa imagem de Bouguereau, Orestes (Membro da amaldiçoada Família dos Atridas: Tântalo, Pélops, Agamêmnon, Menelau, Clitemnestra, Ifigênia, Helena etc) é perseguido pelas Erínias: Vingança que nasce do sangue dos órgãos genitais de Ouranós (Céu) ceifado por Chronos (o Tempo) a pedido de Gaia (a Terra).

O crime de matricídio será julgado no Areópago de Ares, presidido pela deusa da Sabedoria e Justiça, Palas Athena. Saiba mais sobre o famoso "voto de Minerva": Transição do Matriarcado para o Patriarcado. Acesse clicando AQUI.

Versa sobre as origens de Thêmis (A Justiça Divina), Diké (A Justiça dos Homens), Zeus (Ordenador do Cosmos), Métis (Deusa da presciência), Palas Athena (Deusa da Sabedoria e Justiça), Niké (Vitória), Erínias (Vingança), Éris (Discórdia) e outras divindades ligadas a JUSTIÇA.

A ARETÉ (excelência) do Homem

se completa como Zoologikon e Zoopolitikon: desenvolver pensamento e capacidade de viver em conjunto. (Aristóteles)

Busque sempre a excelência!

Busque sempre a excelência!

TER, vale + que o SER, humano?

As coisas não possuem valor em si; somos nós que, através do nôus, valoramos.

Nôus: poder de intelecção que está na Alma, segundo Platão, após a diânóia, é a instância que se instaura da deliberação e, conforme valores, escolhe. É o reduto da liberdade humana onde um outro "logistikón" se manifesta. O Amor, Eros, esse "daimon mediatore", entre o Divino (Imortal) e o Humano (Mortal) pode e faz a diferença.

Ser "sem nôus", ser "sem amor" (bom daimon) é ser "sem noção".

A Sábia Mestre: Rachel Gazolla

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O Sábio Mestre: Antonio Medina Rodrigues (1940-2013)

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Você se sentiu ofendido...

irritado (em seu "phrenas", como diria Homero) ou chocado com alguma imagem desse Blog? Me escreva para que eu possa substituí-la. e-mail: mitologia@esdc.com.br