“Os hábitos dignos de
louvor chamamos de virtudes”. Aristóteles
No Livro I de sua obra “Ética a Nicômaco”, Aristóteles
(385-323 a.C.), imbuído de estabelecer no que consiste aquilo que
todos os seres humanos mais prezam e buscam acima de tudo, conclui
que é a felicidade (eudaimonia), o bem viver.
A felicidade é um bem que se busca por si mesmo, pois não a
ansiamos por causa de outra coisa que não seja ela mesma: “chamamos
de absoluto incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo
e nunca no interesse de outra coisa”.
Nas palavras do filósofo, a felicidade é algo absoluto e
autossuficiente, sendo também a finalidade da ação. Todas as
coisas tem uma função ou finalidade, e a exclusivamente humana é a
atividade virtuosa da alma.
Ela pertence, portanto, ao número de coisas estimadas e perfeitas,
pelo fato de ela ser um primeiro princípio, pois é tendo a
felicidade em vista que nos empenhamos em tudo o que fazemos.
O desejo de amar e ser amado, de se casar, constituir família, de
desfrutar de um lar acolhedor, de dispor de bens, como um bom
automóvel, de conquistar um diploma, uma carreira bem remunerada,
viajar, ser esbelto, angariar boas amizades e de até impressionar,
conquistando os aplausos dos demais, todos esses exemplos são
buscados a fim de se sentir a mais desejável de todas as coisas.
Para se aprofundar mais, confira abaixo o adendo dos estudos de Úrsula Wolf sobre a Ética a Nicômaco (trechos em verde).
Sem dúvida, ser feliz é o que há de mais belo e agradável, o
maior e melhor bem a ser alcançado pelo agir humano e, justamente
por isso, o estagirita desenvolve uma teoria sobre o que seria o bom
uso da racionalidade – para refletir, agir e, claro – viver uma
vida digna de inveja.
Uma vida digna de inveja! Embora valha a pena atingir esse fim para
um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma
nação, afirma Aristóteles, pois o objetivo da vida política é o
melhor dos fins, e essa ciência – a política! – dedica o melhor
de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes
de nobres ações.
Alguns identificam a felicidade com a virtude, outros com a sabedoria
prática, outros com uma espécie de sabedoria filosófica,
acompanhadas ou não de prazer. E outros ainda incluem a prosperidade
exterior. Dos demais bens, alguns devem necessariamente estar
presentes como condições prévias de felicidade, e outros são
naturalmente cooperantes e úteis como instrumentos.
Com efeito, diz ele, o prazer é um estado da alma, e para cada homem
é agradável aquilo que ele ama: um cachorro ao amigo dos cachorros,
uma partida de futebol, ao amante do futebol, mas também os atos
justos ao amante da justiça e, em geral, os atos virtuosos aos
amantes da virtude.
Na maioria dos homens os prazeres estão em conflito uns com os
outros porque não são aprazíveis por natureza, mas os amantes do
que é nobre se comprazem em coisas que tem essa qualidade: nobreza.
Tal é o caso dos atos virtuosos, que não apenas são aprazíveis a
esses homens, mas a si mesmos e por sua natureza, que é de bom
caráter. O homem que não se regozija com as ações nobres não é
sequer bom; e ninguém chamaria de justo o que não se compraz em
agir com justiça.
Caráter é destino, daí a importância da reta conduta pessoal
daqueles que exercerão algum papel dentro do poder político.
Aristóteles ponderou sobre hábitos, moral, vida privada e vida
pública, ética e política, que também é âmbito ao qual pertence
o caráter, pois “não é possível tratar de assuntos de Estado
quando não se tem um certo tipo de compleição, a saber, quando não
se é bom”, entendendo aqui que, ser bom é possuir excelência
(areté).
Quanto ao fato de, em Aristóteles, a relevância do bom caráter
(moral) ser um ramo e o ponto de partida da política (ética), a
estudiosa alemã Úrsula Wolf esclarece que nas sociedades
tradicionais não se fazia distinção entre ética e moral, pois as
normas sociais estendiam-se tanto
no agir da vida privada quanto
na vida pública.
Do que foi dito até aqui, que fique claro que todas ações nas
quais nos empenhamos tem como fim último alcançar a felicidade e
que, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo quanto
para o Estado, o do Estado parece ser algo maior e mais completo,
quer a atingir, quer a preservar.
Isso porque a política, afirma Aristóteles, é a arte mais
prestigiosa, é a arte mestra de todas as demais. É ela quem
determina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado,
quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e
vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a
estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas às suas
diretrizes.
Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado,
legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade
dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa
finalidade será o bem humano. Mas a fim de ouvir inteligentemente as
preleções sobre o que é nobre e justo, e em geral sobre temas de
ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos.
Os sábios e o vulgo concebem a felicidade de forma distinta! A
maioria das pessoas pensa que a felicidade seja uma coisa simples e
óbvia, como o prazer, a riqueza ou as honras.
Os doentes a identificam com a saúde, os que estão sem dinheiro, com a riqueza e, talvez os obesos, com a magreza, quando bem o sabemos que não se trata propriamente de algo exterior ao indivíduo. A vida consagrada ao ganho é uma vida forçada, e a riqueza não é o Bem que procuramos e sim algo de útil.
Dos três principais tipos de vidas: a de prazeres, a política e a contemplativa, a julgar pelo tipo de vida que a maioria das pessoas levam, as mais vulgares parecem (não sem um certo fundamento) identificar o Bem ou a felicidade com o prazer, e por isso amam a vida de gozos.
E irônico, prossegue: “A grande maioria dos homens se mostra em
tudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial, mas encontram
certa justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas
altamente colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo [rei mítico
da Assíria, provavelmente bem imbecil]”.
Muitos, cônscios de sua própria ignorância, admiram aqueles que
proclamam algum grande ideal inacessível à sua compreensão e, à
parte esses numerosos bens citados, existe um outro que subsiste e
também é causa da bondade de todos os demais.
Para o filósofo, as pessoas de grande refinamento e índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois a honra é, em suma, a finalidade da vida pública. No entanto, considerando que os homens buscam a honra para convencerem-se de que são bons e que a honra depende mais de quem confere esse tipo de distinção do que de quem a recebe, Aristóteles diz que o bem próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado é… A virtude!
Adendo dos estudos de Úrsula Wolf sobre a Ética a Nicômaco:
A partir da compleição
constitutiva do querer individual,
Aristóteles torna compreensível porque a questão sobre
esse fim último ou sobre o melhor dos bens é inevitável.
Agora já não estão
em questão os âmbitos
de ação e sua ordenação
e sua graduação internas;
argumenta-se antes a partir da perspectiva “nós” do homem
agente: SE há um fim para as ações que desejamos por ele [fim]
mesmo, e SE queremos outro fim por causa daquele, e SE não buscamos
tudo o que buscamos por causa de um OUTRO fim, então fica claro que
esse fim é o melhor dos bens.
Embora
a frase seja formulada hipoteticamente, Aristóteles quer sugerir que
na realidade há um bem
que é o melhor de todos.
A fundamentação acentua que
sem tal fim a aspiração se encaminharia ao infinito, tornando-se
vazia e vã.
É
evidente que o querer gira no vazio
se a cada pergunta que diz: “por
que é que você faz isso?”
podemos responder: “para
alcançar aquilo”, e
assim sucessivamente. Mas para eliminar o problema do vazio
do querer, parece
ser suficiente haver em geral
pontos finais para o querer,
sem que seja necessário ser precisamente um.
Diversos
encadeamentos da ação poderiam muito bem sustentar-se em diversos
pontos finais, que nós desejamos por eles mesmos. Por
que então haver um fim último?
Aristóteles
aponta a importância de um tal fim para a vida do indivíduo:
como os arqueiros que tem diante dos olhos sua meta, ele
nos possibilita atingir o que é correto.
Aristóteles
diz que é uma grande
falta de compreensão não subordinar sua vida a um fim último.
Isso mostra que a adoção de um fim último tem
fundamentação normativa ou prática e contém uma sugestão
inteligente para uma vida humana boa.
Suponhamos
que na vida de uma pessoa haja três fins a que ela aspira por causa
deles mesmos, por
exemplo, honra,
riqueza e formação.
A
fim de que sua aspiração não fique no vazio, bastaria que ela
realizasse um, dois ou até os três fins sem ligação entre eles.
Todavia, visto que uma
pessoa, enquanto
organismo unitário, realiza
uma vida no tempo e possui capacidade deliberativa,
ela se vê colocada diante da questão de dar ordenação
aos diversos fins, que peso dá a qual fim e quanto tempo dedica a
qual deles, etc.
E
mesmo que a confrontação com essa questão não seja absolutamente
obrigatória é pelo menos plausível afirmar que, para
um ser cuja capacidade deliberativa assume os diversos conteúdos das
aspirações, é necessário impor-se a pergunta
pela ordenação destes
[conteúdos das aspirações].
Mas
então, mesmo que ela
deseje diversos fins e de mesmo nível,
a pessoa irá perseguir
um fim último, a
saber, o fim de
realizar a quantia ordenada dos três fins mencionados.
Isso
leva a uma outra questão de interpretação controversa. Poderíamos
compreender o fim último da aspiração como foi há pouco
explicitado, a saber, que o
fim é desejado por causa dele mesmo,
sustentando assim a aspiração,
porque contém todos
os outros fins.
É
assim que Aristóteles afirma que o
fim da política, o bem para o homem, abarca todos
os outros fins.
Por
outro lado, as explanações sobre a gradação das technai
e a comparação com o arqueiro sugerem
haver um modelo hierárquico dos bens.
Para essa interpretação, a
pessoa que persegue como fins a honra,
a riqueza
e a formação
deveria decidir qual deles é o sumo fim para ela.
Suponhamos que ela considere
que o sumo bem que ela deseja realizar no todo de sua vida seja a
honra, ENTÃO deveria subordinar os fins da riqueza e da formação
ao desejo de honra; aspirar a eles, portanto, apenas na medida em que
representam meios que ajudam a alcançar a honra como fim último.
PROBLEMAS RELACIONADOS COM O CONCEITO DE EUDAIMONIA (Úrsula Wolf):
Como surge a eudaimonia? Quando e em que circunstâncias podemos
chamar alguém de eudaimon? A questão resulta do segundo modo
de dependência do acaso, a dependência das circunstâncias
exteriores cambiantes; poderíamos fazer coincidir a questão com o
problema de estados de coisas contingentes.
Como surge a eudaimonia? A eudaimonia poderia surgir por meio do
exercício, por um presente de Deus ou pelo acaso.
A eudaimonia como atividade de acordo com a areté, ela surgiria,
portanto, por meio do exercício. Correspondentemente, a política,
que tem como fim o melhor dos bens, procura formar os cidadãos e
educá-los para a areté. Crianças e animais não podem alcançar a
eudaimonia, porque não estão em condições de agir de modo
próprio.
SE a eudaimonia surge pelo exercício e pelo aprendizado, com isso
radicaliza-se em muito o problema da contingência. SE ela surgisse
pelo acaso ou se fosse um presente da natureza, então para a maioria
dos homens não haveria qualquer esperança de alcançá-la.
É só se ela surge pelo exercício que pode ser alcançada pela
maioria; todavia, mesmo assim, não o é para todos. Não podem
alcançá-la aqueles que não tem acesso ao exercício pela educação.
Não alcançam aqueles que não se desenvolvem como crianças cidadãs
bem situadas (pois é só sob essas condições que podem receber
formação em geral).
Entre esses, alcançam a eudaimonia apenas aqueles que tem bons
educadores, que conhecem e praticam eles próprios a areté ética e
conseguem fazer que as outras pessoas se exercitem nela.
Se seguimos os pressupostos desse pano de fundo, as condições de
acesso à eudaimonia, portanto, são dadas a poucos.
Quando é que se pode chamar alguém de eudaimon?
Os gregos dão grande importância à questão de saber até que
ponto se pode considerar alguém feliz, uma vez que a felicidade
nasce da experiência de que mesmo uma pessoa a quem sua vida
transcorreu bem até o momento presente pode, de repente, tornar-se
infeliz, em virtude de acontecimentos exteriores, como aconteceu a
Príamo, o rei de Troia, que sofreu a destruição de sua cidade e a
morte de seus filhos.
É a esse tipo de destino que se refere a conhecida frase do político
e poeta Sólon: “antes do fim de sua vida não se pode considerar
ninguém eudaimon”.
Aristóteles e sua concepção de eudaimonia, para quem os bens
exteriores pertencentes ao âmbito da TYCHÉ têm o teor de meras
condições adicionais (…).
A eudaimonia consiste em última instância nas atividades conforme a
areté porque estas garantem um modo de vida de muita estabilidade,
ao passo que a admissão da eutykhia como parte constitutiva da
eudaimonia tornaria a eudaimonia uma espécie de camaleão,
modificando-se constantemente de felicidade em infelicidade.
Com isso, fica clara de novo a razão que orienta a concepção
aristotélica de eudaimonia: o melhor dos bens para o homem deve
apresentar duração e consistência, e a continuação da atividade
conforme a areté deve fazer jus precisamente a essa razão no
interior da vida.
O primeiro tratado sobre o prazer afirma que é errôneo considerar
eudaimon alguém que caiu em grande infelicidade exterior, mesmo se
ele for bom. Todavia, Aristóteles acentua a diferença entre
eudaimonia e tyché.
Na sua teoria sobre o prazer encontrado na atividade (I-11),
Aristóteles acentua a importância de apreender de maneira bem
precisa o nexo entre eudaimonia e tyché.
Esse prazer se instaura quando a atividade humana é realizada sem
impedimentos, uma vez que os impedimentos são considerados como um
desprazer. Felizes acasos podem aumentar a eudaimonia, enquanto
acasos infelizes perturbam-na.
Também aquela pessoa que é eudaimon, no sentido da definição
encontrada em I-6, pode portanto, ver-se impedida no exercício desse
modo de vida, na medida em que é acometida de doença, perda dos
bens, etc., ou quando seus próximos morrem ou sofrem infortúnios.
Mesmo sob circunstâncias adversas é possível não perder a
eudaimonia, na medida em que essa pessoa suporta esses infortúnios
exteriores de modo adequado, e apesar das adversidades exerce a
atividade da areté.
Por outro lado, não diríamos que a pessoa é completamente
feliz; completamente feliz parece ser apenas quem vive sua
vida sob condições que fomentam a atividade conforme à areté, de
tal modo que seu exercício se torna alegria.
Aristóteles usa a
apalavra makarios (venturoso, feliz, aquele que tem a forma
perfeita da felicidade), que significa a eudaimonia que inclui em si
a eutykhia.
Meu e-mail: mitologia@esdc.com.br
Um comentário:
Estou lendo a Ética A Nicômaco e é bem desafiador. E esse texto vem pra elucidar de forma brilhante, muitíssimo obrigado por compartilhar seu conhecimento.
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