“Nós
ignoramos as causas que a razão universal estabelece, mas tudo está
entrelaçado, de maneira que nada é fruto do acaso”. Néstor Luis
Cordero
A moral roga que
suportemos “estoicamente” os reveses da vida. Mas, no que
consiste e por quais linhas se pauta essa escola que surgiu em
Atenas, por volta de 310 a.C.?
As bases do estoicismo
foram lançadas por Zenão, da cidade de Cítio, no Chipre, que se
tornou ouvinte do cínico Crates, discípulo de Diógenes de Sínope
(clique aqui e confira o artigo anterior).
Aos poucos, Zenão foi se
tornando independente, construindo seu próprio caminho, reunindo-se
com seus seguidores em frente a um dos pórticos da ágora.
Na ágora, em
Atenas, havia pórticos (grego, stoá) e por
Zenão estar sempre por lá, identificaram-no como sendo “o do
pórtico”, e de “estoico” (stoikós) os que
costumavam acompanhá-lo.
No cinismo de Diógenes,
as ideias eram apaixonantes, mas marginais, já as de Zenão caíram no
gosto do povo, dos escravos e até dos poderosos porque “(...) o
tipo de vida proposto pelo estoicismo não diz respeito à
exterioridade do ser humano, mas sim a seu foro íntimo”, afirma o
estudioso Néstor Luis Cordero.
Esse universalismo
interior ofereceu um norte ao emergente cidadão do cosmos
(kosmopolités), pois toda diferença de nacionalidade, de
raça e até mesmo de status social é tida como antinatural.
A identificação com essa escola foi tal, que o estoicismo se propagou pelo Império Romano e prolongou-se por muito tempo.
A identificação com essa escola foi tal, que o estoicismo se propagou pelo Império Romano e prolongou-se por muito tempo.
Segundo Cordero,
costuma-se distinguir o estoicismo em três etapas: o período
“antigo”, iniciado por Zenão e seus discípulos Cleantes de Asso
e Crisipo de Soles; um período “intermediário”, com as figuras
de Panécio de Rodes e Possidônio de Apameia; e o período “tardio”,
cujos representantes de destaque foram Sêneca, o Imperador Marco
Aurélio e o escravo Epiteto.
Algumas respostas ao
problema do conhecimento, sobre a realidade das coisas e a conduta a
ser seguida já havia sido pensadas por filósofos anteriores,
ressalta o autor, mas dependia da habilidade do pensador encontrar um
nexo entre domínios tão diversos e complexos.
O estoicismo é a
primeira escola filosófica que se apresenta como um sistema (que é
um conjunto de respostas relacionadas entre si, que se complementam
umas às outras) organizando-se sobre três principais eixos
interligados, formando uma unidade: física, ética e
lógica.
A filosofia é como um
animal: ossos e tendões são a lógica; sangue e carne, a
física; e a alma é a ética. Essas três partes se
encontram reunidas na máxima que resume a filosofia estoica: “É
preciso viver segundo a natureza [phýsis]”.
Para tanto, supõe um
conhecimento (do qual se ocupa a física), alcançado de certa
maneira (do que se ocupa a lógica) e tudo isso para que vivamos de
certo modo, cujas normas sejam ditadas pela ética (terreno da alma).
Notoriamente, o âmbito
privilegiado é o da ética (alma) e, prática, a filosofia estoica é
um exercício cotidiano, já que “viver segundo a natureza”
pressupõe um exercício constante.
Por isso, os estoicos
retomam dos cínicos o termo áskesis que é “refinar graças
a um exercício” diário, pois, quem deseja os louros deve preparar-se diariamente: “se o ser humano quer ser feliz, deve
exercitar-se a todo momento na técnica que consiste em viver segundo
a natureza”.
Para eles, somente uma
vida segundo a natureza conduz à felicidade, que é o bem supremo.
Mas, diferente dos cínicos que propunham um atalho, os estoicos
apresentam um programa original.
A convivência social já
não é o que costumava ser e Zenão não encontra respostas
satisfatórias nem na Academia nem no Liceu, para ele, urge que o ser
humano alcance a felicidade, cujas regras devem ser ditadas pela
phýsis.
Diz-se que do oráculo,
Zenão ouviu: “Toma o aspecto dos mortos” e ele interpretou que
deveria estudar os filósofos do passado: “É assim que sua
doutrina da natureza recolhe vários elementos dos pensadores
pré-socráticos, que interpretavam a phýsis abarcando toda a
realidade (em função de certos elementos ou princípios) e que
sublinhavam seu caráter material e mesmo vital”.
Como todos os gregos,
salienta Cordero, os estoicos defendiam a eternidade da matéria, já
que não admitiam a noção de criação: “E como a única entidade
éter é a divindade, os estoicos assimilavam deus à
natureza”.
A física – estudo da
natureza – ensina de que maneira uma substância divina onipresente
organiza, controla e dirige o mundo: “(...) a totalidade da
realidade é divina” e no materialismo dos estoicos – que é
muito especial – estão incluídos também valores, sentimentos e
as qualidades morais.
Retomam a definição do
que existe e do que não existe proposto por Platão no Sofista e
assentam que: “existe aquilo que é capaz de atuar ou de sofrer uma
ação”, considerando que a vergonha, por exemplo, é uma emoção:
faz-nos enrubescer, ou seja, influencia no corpo, e se influi é
porque é material.
Diógenes Laércio
postula que: “os princípios de todas as coisas são de dois tipos:
o que atua (agente) e o que padece (paciente). O que padece é a
matéria; o agente é o lógos que se encontra nela, quer
dizer, a centelha divina (deus). Este, que é eterno, modela tudo por
intermédio da matéria”. Eis a teoria exposta por Zenão.
Os dois princípios
[agente e paciente] são eternos e opostos: limitada, a matéria é
passiva, e o lógos, ativo. Quando os dois princípios se unem
– pois um ‘fecunda’ o outro (o lógos é chamado
espermático ou seminal) –, a realidade que resulta é ativa e
passiva ao mesmo tempo.
O lógos, que é
divino fecundará a matéria: “O lógos tem um projeto do
que pensa fazer, como o carpinteiro tem em mente o plano de sua mesa.
O lógos “racionaliza” sua produção, e por esta razão
apenas no estoicismo o termo lógos adquire plenamente o
sentido de ‘razão’”.
E, como é divino, o
universo é fabricado com materiais preexistentes, por uma razão
divina. Essa originalidade da teoria estoicista influenciará a
doutrina cristã.
Sendo o lógos
imanente à matéria, fecunda-a de dentro dela mesma. Eles se
inspiram em Heráclito: “(...) o lógos está presente na
matéria como um sopro ígneo que, como o fogo do ferreiro, molda a
matéria (...)”.
Cordero aponta que
Crisipo associará a esse sopro ígneo a noção de pnéuma,
“espírito” (noção também adotada pelo cristianismo), que
também é material, mesmo que não o enxerguemos, como o vento.
Em maior ou menor grau, o
pnéuma-lógos está presente em tudo o que há por “simpatia”
(syn+pathós) universal.
O pnéuma, que é
o lógos ígneo, vai se misturando com a matéria de forma
progressiva e hierárquica: numa rocha (minimamente), nos vegetais
(phýsis), nos animais (psyché, princípio de
movimento) e nos seres humanos (diánoia, o raciocínio), diz
o autor.
Esse universo –
“simpatético”, uma vida segundo a natureza – não comporta a
dicotomia teoria/práxis, mas presume que a teoria só tem
sentido em função da ação prática e que esta supõe uma teoria
prévia: “Assim como os médicos têm sempre à mão uma caixa de
primeiros socorros para os casos de urgência, deves ter à mão para
qualquer ocasião os preceitos que te permitem conhecer as coisas
divinas e humanas para atuar em cada caso com a certeza de que há um
encadeamento mútuo de todas as coisas”, recomenda Marco Aurélio.
Diferente de Platão, que
no Fédon opõe o corpóreo ao racional, no estoicismo a natureza, em
seu conjunto é racional (interpenetrada pelo lógos): “Um ser
'natural' é um ser 'naturalmente racional', apto a conhecer”.
Cordero afirma que no estoicismo, a busca pela felicidade não
conflita com nossas “tendências naturais”.
O imperativo “Viver
segundo a natureza” visa a busca racional pela felicidade e
significa tomar consciência do estado natural do ser humano,
adequando condutas que não violentem nem ponha em perigo esse estado
natural.
A moral estoica, diz o
autor, constituiu um autêntico inventário de noções que descrevem
esse estado natural e o tipo de ações que devem ser realizadas em
função do mesmo.
Cícero afirma que o ser
vivo tem uma “tendência (ou inclinação) a amar sua natureza,
quer dizer, tudo o que é capaz de conservá-la, e a fugir de tudo o
que pode destruí-la.”, e o ser humano possui a razão, que é o
que rege sua vida natural e permite “julgar, apreciar e valorar
tudo o que a natureza oferece”.
Para Cícero, o ser vivo
sente-se como em sua casa na natureza, mas não é o homem quem se
apropria da natureza, mas a natureza que se apropria do ser humano.
Há noções valiosas
(áxios), boas, justamente porque estão de acordo com a
natureza (justiça, sabedoria) e não valiosas (anáxios) e
más porque são contrárias à natureza (injustiça, loucura).
O senso comum apontará
cada uma delas como sendo boa ou má, mas há também a vida, a
morte, a saúde, doença, prazer, dor, riqueza e pobreza –
indiferentes –, pois “tudo depende do uso que se lhes dê,
o que supõe a responsabilidade do sujeito moral”.
Obviamente, alguns são
preferíveis enquanto outros são “suprimíveis” e entre os
preferíveis, tudo aquilo que é positivo segundo a natureza, diz
Cordero, merece o nome de “conveniente”.
Às ações apropriadas,
adequadas, estoicos romanos denominaram “officium”, que é
uma contração de “opus facio”, “faço o que devo”,
afirma o autor. E tudo o que se opõe às ações convenientes é
chamado de ‘falta’ (hamárthema), termo que os cristãos
transformaram em ‘pecado’.
Ações convenientes que
permitem alcançar a excelência ou virtude (areté) são
ditas “perfeitas” (kathórtoma) e trazem a presença do bem
supremo em cada ser humano, que é o summum da ética estoica:
“a excelência é o cume do ser racional enquanto racional”,
dizia Diógenes Laércio.
A meta da maioria dos
filósofos gregos era atingir a excelência, a consciência daquilo
que nos falta: “Quem alcança a excelência ‘possui’ o bem
supremo, que é um habitus, uma posse (latim habeo,
possuo) que é inalienável. O indivíduo excelente pode estar
privado de tudo (liberdade, bens, etc.), mas ninguém pode despojá-lo
de seu bem supremo.”.
O sujeito moral estoico
sabe escolher, devido à faculdade da phrónesis (prudência,
sagacidade) que é o que nos previne contra nosso pior inimigo: as
paixões, que, como alerta Diógenes Laércio “é um movimento da
alma irracional e contrário à natureza”, pois em vez de nos
incitar a viver ‘segundo’ (katá) a natureza, nos leva a atuar
‘contra’ (pará) ela.
Se considerarmos que
nossa natureza é ser racional, tudo o que vai ‘contra’ essa
faculdade é irracional e prejudicial, pois a alma, em vez de
raciocinar, pode muito bem se deixa levar “pelo que se diz” e,
por vaidade e ganância, por exemplo, seguindo falsos valores,
enreda-se em ciúmes, raiva, mágoas, etc. Esse caráter das paixões
será denominado pelos estoicos romanos de “perversio” ou
“perturbatio”.
O antídoto contra esse
embotamento seria ver as coisas como elas são “o bem reside
no bom uso das representações”, diz Epiteto. E Cordero enfatiza:
“A origem da paixão é um erro de apreciação, de juízo”.
Como exemplo do engano
causado pelas errôneas representações, citam o caso da criança
que, não fazendo juízo prévio de um tirano, não o teme, pois não
faz ideia do pavor e repulsa que esse causa, como ocorre nos adultos:
“É a representação do tirano que te dá medo”.
Antifonte dirá que o
mundo se divide entre sábios e ignorantes e que todos nós podemos
chegar a ser sábios, caso levemos uma vida de acordo com a natureza.
Quem for capaz de vencer
as paixões e viver segundo a razão (ou seja, segundo a “natureza”,
que é “racional”) torna-se “sábio” (sophós): “O
sábio não é apático (privado de “pathós”, paixão), mas
antes imperturbável, já que sabe distinguir entre aquilo que
depende de nós e aquilo que escapa ao nosso controle”.
Riqueza, fama ou honras
não dependem de nós, mas das circunstâncias, são frágeis; já
nossos desejos, tendências e aversões, estão em nossas mãos.
Assim, é sábio regularmos nossa vida em função do que depende de
nós, sempre mediante uma prévia representação correta das coisas.
Sábio é aceitar o que
escapa ao nosso controle, regularmos nossa vida em função do que
depende de nós, harmonizando nossa vontade com o que nos acontece,
de maneira que nada aconteça apesar de nós, que nada ocorra
contra a nossa vontade, diz Epiteto: “A liberdade consiste
em aceitar a necessidade cósmica”.
É preciso desejar que
ocorra o que vai ocorrer, roga o estoicismo. Os estoicos pensam no
destino de modo diferente dos antigos filósofos e poetas trágicos,
não é um poder impessoal, mas uma realidade natural, afirma Néstor.
Aulo Gélio, no séc. II
escreveria para Crisipo dizendo que “o destino era um certo
ordenamento natural e eterno da eternidade, segundo o qual uma das
coisas sucedem outras e vão se substituindo, em um entrelaçamento
inviolável”.
E Cícero responde que “o
destino em questão não é o da superstição, mas sim o da física,
causa eterna das coisas, segundo a qual o passado se produziu, o
presente se produz e o futuro se produzirá”.
Cordero diz que tudo está
relacionado não apenas no espaço, como também no tempo, e somos
atores do que ocorrerá, ainda que não o saibamos. Os estoicos
apreciavam a adivinhação, que Crisipo dizia ser a capacidade de
detectar os sinais que os deuses enviam aos homens.
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