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“Posso não concordar com nenhuma
das palavras que dizes, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-las”. Voltaire
O exercício da tolerância ao
estranho, ao estrangeiro, é algo tão árduo aos ‘racionais’ que, atendendo ao
direito arcaico, na mitologia grega, não por acaso (sem causa) esse foi o
primeiro epíteto do ordenador do cosmos, Zeus: “Protetor de Forasteiros” (Xênios). É também a isso que roga o
Primeiro Artigo da “Declaração Universal
dos Direitos do Homem” (ONU – 1948), onde impera o dever de agir com
espírito de fraternidade.
Insiste-se nisso porque dificilmente
alguém pode orgulhar-se de não acalentar nenhum preconceito. Quando não adversos
à sexualidade (homoafetivos, por exemplo), são quanto ao aspecto físico (negros, idosos,
obesos, portadores de deficiência), à religião (judeus, evangélicos, mórmons,
etc.), simplesmente à precária condição econômica ou de deficiência
cognitiva.
Mesmo aquele que se declara isento de preconceito – que nada mais é que uma reação moral espontânea – poderá se flagrar espantado com a visão de uma quinquagenária grávida, por exemplo. Nossa psique é formada em nosso ambiente e seus valores, o que constitui nossa "cultura".
Mesmo aquele que se declara isento de preconceito – que nada mais é que uma reação moral espontânea – poderá se flagrar espantado com a visão de uma quinquagenária grávida, por exemplo. Nossa psique é formada em nosso ambiente e seus valores, o que constitui nossa "cultura".
Quando se roga por tolerância, a
primeira ideia que vem à mente é a da ‘obrigação’ de consentir, aguentar,
suportar, aceitar algo indesejado. Mas, como esclarece a Declaração de Princípios sobre a Tolerância (UNESCO - 1995), em seu
Artigo 1º: “A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência”. A
tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das
culturas de nosso mundo.
Sustentáculo dos direitos
humanos, não é só um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade
política e jurídica, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos
direitos fundamentais do outro.
A perda do sentido de dever é tão
forte que ao pensar nos direitos pensa-se nos “meus” direitos, não nos direitos
dos outros. Curioso é o esquecimento dos “meus” deveres, mas não, jamais se
esquece dos deveres dos outros.
Seja no seio familiar, nas
escolas, nos locais de trabalho e, enfim em toda comunidade à qual participamos,
acalentar intolerância fomentando a hostilidade promove a exclusão conduzindo
os marginalizados à frustração, à revolta e ao fanatismo. A educação, em todos
esses meios, é o modo mais eficaz de prevenir a intolerância. Ensinar sobre os direitos
e liberdades dos outros é uma forma de assegurar o respeito e um incentivo à
vontade de proteger esses direitos e liberdades.
Nossa intolerância advém da cegueira do nosso tempo. Outrora, em nosso ainda estreito horizonte, uniões inter-raciais ou divórcio, por exemplo, foram deploráveis. Hoje, constitui uma realidade aceita e os filhos de pais separados não são mais olhados de soslaio.
Enfrentar, esclarecer e iluminar o
hoje, pelo amanhã é um caminho para a tolerância. Com isso se empenhou o
filósofo iluminista François-Marie Arouet (1694-1778), conhecido pelo
pseudônimo de Voltaire, que lutou ferrenhamente em defesa da tolerância, da
liberdade e da Justiça.
Na França de Voltaire, as
autoridades arrogavam para si o direito de apontar, perseguir, condenar e matar
as minorias por suas crenças religiosas.
Seu “Tratado sobre a Tolerância” (1763)
partiu da revolta pela injustiça cometida a um humilde pai de família, que,
após um julgamento apressado e obscuro fora condenado a uma morte dramática
devido à intolerância religiosa. Trata-se do famoso caso de Jean Calas, onde o clamor popular eclipsou a falta de provas.
O nobilíssimo e aristocrático pensador
encarrega-se do caso e ganha a causa moralmente, reabilitando a inocência do
injustiçado: “(...) o furor da facção e a singularidade do destino concorreram
para assassinar juridicamente na roda o mais inocente e mais infeliz dos homens
para dispersar-lhe a família e para reduzi-la à mendicância (...)”.
Será a partir de seu envolvimento
nesse drama que Voltaire, cauteloso, pois sabe que enfrenta poderosos, amplia perspectivas
e propõe modificações na legislação antiprotestante.
Humanista, Voltaire advoga com
brilhantismo! A agudeza argumentativa para mobilizar a opinião pública fez
parte de sua estratégia e o empenho na redenção de Jean Calas pôs fim à perseguição
dos protestantes.
Segundo o estudioso René Pomeau:
“Foi somente em 1787 que o rei Luis XVI decidiu-se a promulgar um édito de
tolerância, em favor de seus súditos que não pertenciam à religião católica (...).”.
Avançando e ampliando mais, a Declaração dos direitos do homem de 1789 (link: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001315/131524porb.pdf ) institui que “todos os cidadãos [...] são igualmente admissíveis a todas as
funções graduadas, colocações e empregos públicos [...] sem outras distinções
além daquelas de suas virtudes e de seus talentos”, findando então a exclusão teórica
dos protestantes.
Ainda que a Declaração de 1789
não afirme explicitamente a liberdade do culto público, seu artigo X estipula
que “ninguém deve ser importunado por suas opiniões, inclusive religiosas,
contanto que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela
lei”.
E o artigo XI, ao afirmar que “a
livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais
preciosos do homem” implicava uma liberdade de culto que era, na verdade, daí
em diante, praticada sem entraves, afirma Pomeau.
Embora tenha se inspirado em John
Locke, que desenvolveu como ideia principal “a distinção entre a comunidade
política e a sociedade religiosa, a distinção e a separação radical entre as
funções da Igreja e as do Estado”, Voltaire não tinha por objetivo essa
separação, mas a subordinação da Igreja ao Estado, pois enxergava nisso um meio
eficaz de se garantir a tolerância.
Fortemente embasado através de um
amplo panorama histórico, o “Tratado” está repleto de relatos de atrocidades
cometidas por diversas religiões ao longo de toda a história até sua época. São
sofrimentos desumanos, dilacerantes.
Atento quanto à supremacia dos
interesses mundanos sobre os preconceitos, inclusive religiosos, Voltaire
designa a Bolsa de Londres, como sendo um dos lugares privilegiados da
tolerância.
Dentre os trechos mais comoventes
dessa sua obra, destacamos a impressionante “Prece a Deus”, com a qual Voltaire
conclui seu Tratado: “Já não é aos homens que me dirijo, é a Ti, Deus de todos
os seres, de todos os mundos e de todos os tempos” (confira texto na íntegra, logo abaixo).
A despeito de nossa revelia, urge
nos imbuirmos de dissipar os preconceitos, se não por nós, ao menos a favor de
nossos descendentes, para que sejam poupados da violência cultivada em nossas
enraizadas, egoístas e caquéticas convicções morais (de mores, costumes).
Certamente, não nos referimos aqui a aberrantes e indiscutíveis perversidades (pedofilia, necrofilia, zoofilia, etc.), mas a recusa em legalizar civilmente uma relação homoafetiva que pressupõe amor e mútuo consentimento, revela-se arbitrariamente violenta.
Quanto às religiões, compartilho
da ideia de Voltaire de que o conhecimento absoluto, em matéria de metafísica,
ultrapassa o alcance do espírito humano e o que produz o valor de um credo, de
uma crença, não é seu conteúdo, mas a fé: “Quanto mais seitas houver, tanto
menos perigosa cada uma será (...)”.
Em nosso país, convivem
pacificamente, espíritas, católicos, judeus, mórmons, testemunhas de Jeová,
muçulmanos, ateus, umbandistas, zoroastras, budistas, protestantes, taoistas
e muitos, muitos outros.
O filósofo alemão Immanuel Kant
(1724-1804) nos diz que o dever fundamental do homem é a própria perfeição e a felicidade
alheia. Nós invertemos: a própria felicidade e a perfeição alheia.
Prece a Deus - Voltaire
Não é mais aos homens, portanto, que eu me dirijo, mas a você, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos; se a frágeis criaturas perdidas na imensidão e imperceptíveis ao resto do universo, for permitido ousar pedir algo a você, você que tudo concedeu, você cujos decretos são tanto imutáveis quanto eternos, digne-se olhar com piedade aos erros ligados à nossa natureza; que tais erros não se transformem em calamidades.
Você não nos deu um coração para odiar nem mãos para nos degolarmos uns aos outros; faça com que nos ajudemos mutuamente a suportar o fardo de uma vida penosa e passageira; que as pequenas diferenças entre as roupas que cobrem nossos corpos débeis, entre todas as nossas línguas insuficientes, entre todos os nossos costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas as nossas opiniões insensatas, entre todas as nossas condições tão desproporcionais a nossos olhos, mas tão iguais diante de você; que todas estas pequenas nuances que distinguem os átomos chamados homens, não sejam sinais de ódio e de perseguição; que aqueles que acendem velas em pleno meio-dia, para celebrar você, suportem aqueles que se contentam com a luz de seu sol; que aqueles que colocam sobre a roupa um véu branco para dizer que é preciso amar você, não detestem os que dizem o mesmo debaixo de um manto de lã negra; que aqueles cujas roupas são tingidas de vermelho ou púrpura, que dominam uma parcelazinha de uma porçãozinha do barro deste mundo e que possuem alguns fragmentos redondos de certo metal, usufruam sem orgulho daquilo que eles chamam de grandeza e riqueza, e que os outros os olhem sem inveja: pois você sabe que nessas vaidades não há o que invejar nem do que se orgulhar.
Possam todos os homens lembrar-se de que são irmãos! Que todos tenham horror à tirania exercida sobre as almas, do mesmo modo como acham execrável a bandidagem que toma à força o fruto do trabalho e da indústria pacífica! Se os flagelos da guerra são inevitáveis, não nos odiemos, não nos dilaceremos uns aos outros no seio da paz e empreguemos o instante de nossa existência a bendizer igualmente em mil línguas diversas, do Sião à Califórnia, a sua bondade, que nos concedeu este instante.
Fonte: Tratado sobre a Tolerância - por ocasião da morte de Jean Calas (1763), cap. XXIII.
Dedicado aos 70 anos de João Antonio Ferreira: tolerante e otimista, meu amado pai.
5 comentários:
Lú querida, texto maravilhoso e poderoso. É impressionante como Voltaire era um homem com uma visão tão a frente de seu tempo. Adorei!
Beijo grande.
Alexandra
Bonito post, principalmente em homenagem a quem fez. Querida amiga, eu, como economista preso às minhas tradições neoclássicas, não posso deixar de registrar como encaro o preconceito: ato de excluir, por motivos econômicos. Qualquer desculpa, como a cor, a religião, origem, etc, estará a posto para a finalidade que se destina: afastar um grupo dos interesses de outros grupos. Naturalmente, a maioria dos filosofos que você citou estão presos ao seu tempo em que a liberdade individual se firmava com todo vigor. Assim, totalmente coerentes estavam esses pensadores. Grato, pelo texto e um feliz dia das mães.
Alexandra, minha querida,
Um verdadeiro humanista, não?
Marco,
Sarcástico, Voltaire dizia que quando se trata de dinheiro todos tem a mesma religião.
É notório o que apontas, amigo (refiro-me ao fato da economia permear as decisões de exclusão e inclusão).
Meu papito acaba de completar 70 aninhos (8 de maio) e, hoje mesmo, me disse que as 3 piores coisas no mundo são: a velhice, a feiura e a pobreza. Que agora está mesmo ferrado. Arrancou uma tremenda gargalhada de todos nós.
Realmente, tive um "Dia das Mães" muito feliz, junto ao Amor e a prole.
Muitíssimo grata por terem se manifestado, amigos.
Beijos e Boa semana a todos.
lu.
Bom demais esse texto...
Otimo texto....
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