“Viajante
sem bagagem, a filosofia viria ao mundo sem passado, sem pais, sem família?”
O renomado historiador Jean-Pierre Vernant (1914-2007) afirma que pensamento racional possui registro civil. Data: século VI; Local: Grécia, precisamente nas cidades gregas da Ásia Menor (Jônia, Mileto, Sicília, etc.).
E, se os pré-socráticos Anaxímenes,
Anaximandro, Tales, Empédocles, Parmênides e Heráclito, para citar alguns, são
seus pais, os magnânimos aedos (poetas) são seus avós.
Iniciando uma nova forma de
reflexão sobre a natureza, “Os filósofos
jônios abriram o caminho que a ciência não fez depois senão seguir”, diz
Burnet, apontando o pontapé inicial do que hoje chamamos ‘pensamento
científico’.
Diferente de Burnet, Cornford fiz
que a ‘física’ jônia não corresponde ao que denominamos ‘ciência’, pois não é
produto da observação e tampouco faz experimentos, mas na verdade “Transpõe, numa forma laicizada e em um
plano de pensamento mais abstrato, o sistema de representação que a religião
elaborou.” É sobre essa transposição do mito ao lógos que versaremos.
Considerando que o pensamento
verdadeiro não poderia ter outra origem senão ele próprio, Vernant afirma que
foi na Escola de Mileto que o lógos se libertou do mito.
Inteligência, raciocínio e
espírito de observação são qualidades que o distanciamento permite entrever no
‘milagre grego’, diz ele: “através da
filosofia dos jônios, reconhece-se a Razão intemporal encarnada no tempo. O
aparecimento do lógos introduziria, portanto, na história uma descontinuidade
radical.”.
É sabido que o pensamento
racional interroga seu passado tentando “estabelecer
o liame que une o pensamento religioso e os começos do conhecimento racional.”.
Os arcaicos mitos cosmogônicos
(a palavra cosmos em grego significa ‘ordem’), ou seja, que buscam ordenar
a origem (gens) da physis (natureza) são retomados
pelos filósofos que estabelecerão a partir daí suas cosmologias (ordem
lógica).
Os primeiros filósofos utilizaram
um material conceitual análogo ao dos poetas inspirados pelas musas (Homero e
Hesíodo) e deram uma resposta distinta ao mesmo tipo de pergunta: como pode
emergir do caos [ápeiron] um mundo ordenado?
Enquanto o mundo dos poetas é
ordenado através da partilha dos domínios das instâncias da natureza entre os
deuses (Zeus, o Fogo; Hades, o Ar; Poseidon, a Água e Gaia, a Terra), o cosmos
dos jônios organiza-se “segundo uma divisão
das províncias, uma partilha das estações entre forças opostas que se
equilibram reciprocamente.”. Senso assim, não nomeiam divindades, mas
elementos.
Vernant esclarece que é assim que
por detrás dos elementos dos jônios (ar, fogo, terra e água), perfila-se a
figura de antigas divindades da mitologia: “Ao
tornarem-se ‘natureza’, os elementos despojaram-se do aspecto de deuses
individualizados; mas permanecem as potências ativas, animadas e imperecíveis,
sentidas ainda como divinas.”.
Chamando a atenção para o fato de
que não se trata de uma vaga
analogia, o autor diz que entre a filosofia de um Anaximandro e a Teogonia [obra
sobre a origem dos deuses] de um poeta como Hesíodo (séc. VIII a.C.), as
estruturas se correspondem até no pormenor.
Eis então, no mito e no lógos nascente, duas formas de traduzir
níveis diferentes de abstração, explicitando o mesmo tema de ordenamento do
mundo.
Para o historiador, esse novo “processo de elaboração conceitual [ao
invés de deuses, são o úmido, o seco, o quente, o frio] que tende à construção naturalista do filósofo já está em gestação no
hino religioso de glória a Zeus que o poema hesiódico celebra”.
O mito da Teogonia, por exemplo,
é a ilustração de um drama ritual, um modelo da festa real da criação do Ano
Novo babilônico, no mês de Nisan: “Através
do rito e do mito babilônicos, exprime-se um pensamento, que não estabelece
ainda entre o homem, o mundo e os deuses, uma nítida distinção de planos.” No
mito, natureza (deuses) e sociedade (homens) estão confundidas.
Noutra passagem da Teogonia, a
emergência do mundo prossegue com sucessivos nascimentos que se operam SEM a
intervenção de Eros, ou seja, não por união, mas por segregação, tal como o que
relata o aparecimento do mar, que surge da terra.
Eros, esclarece Vernant, é
o princípio que aproxima os opostos – como o macho e a fêmea – e que os une: “Enquanto não intervém, a gênese processa-se
por separação de elementos previamente unidos e confundidos.
Na Teogonia, diz Cornford,
reconhece-se a estrutura de pensamento que serve de modelo a toda filosofia
nascente – a física jônia, – e nos apresenta o seguinte esquema de análise:
1º no começo, há um estado de indistinção onde nada aparece;
2º desta unidade primordial emergem, por segregação, pares de opostos:
quente e frio; seco e úmido, que vão diferenciar no espaço quatro províncias: o
céu de fogo, o ar frio, a terra seca, o mar úmido;
3º os opostos unem-se e interferem, cada um triunfando por sua vez sobre
os outros, segundo um ciclo indefinidamente renovado, no nascimento e na morte
de todo ser vivo (plantas, animais e homens), na sucessão das estações do ano, enfim,
de todo fenômeno.
Vernant ressalta que a obra de
Cornford tinha por preocupação essencial restabelecer, entre a reflexão
filosófica e o pensamento religioso que a tinha precedido, o fio da continuidade
histórica, mas “marca uma virada na
maneira de abordar o problema das origens da filosofia e do pensamento
racional. Intentando combater a teoria do milagre grego que apresentava a
física jônia como a revelação brusca e incondicionada da Razão (...)”,
pois, na filosofia jônia o mito é ‘racionalizado’.
Procurou então, os aspectos de
permanência e, ao insistir o que aí se pode reconhecer de comum: “(...) se tem por vezes o sentido de que os
filósofos se contentam em repetir, em uma linguagem diferente, o que já dizia o
mito”.
Buscar na filosofia o que há de
mais antigo, destacando o que há de verdadeiramente novo “aquilo que fez precisamente com que a filosofia deixe de ser mito para
se tornar filosofia.”, faz surgir um pensamento atrelado a uma nova
gramática, com amplitude, limites e condições diversas.
Se o conhecimento das coisas, na mitologia,
é poeticamente inspirado pelas musas, na filosofia ele é provocado pela
racionalização, ou seja, toma a forma de um problema explicitamente formulado a
ser resolvido. O conhecimento de saberes que o mito explicita está dado; na
filosofia, deve ser buscado.
A cosmologia (ordenamento do
lógos, portanto lógico) dos primeiros filósofos revela que suas noções
fundamentais (segregação a partir da unidade primordial, luta e união
incessante dos opostos, mudança cíclica e eterna) emergiram de um pensamento
mítico, cosmogônico: “Os filósofos não
precisaram inventar um sistema de explicação do mundo: acharam-no já pronto.”.
O portentoso abismo entre o Espírito
(Ouranós, o céu) e a Matéria (Gaia, a terra) amainado pelo mito foi ‘aberto’ pelos
desbravadores pré-socráticos. Da agonia, nos consolam melhor os deuses; À
aventura, nos inquieta mais a filosofia.
5 comentários:
Oi Luciene!
Lindo blog! Lindas imagens...e certamente conteúdo imenso!!! Confesso que não li ainda,pq como vc disse, em alguma parte da página(já me perdi!),demanda tempo,calma...para ler/entender/refletir. Voltarei,certamente! Quero aprender por aqui...
Ah,vi seu link no blog da Consuelo,de quem sou absolutamente fã! Bjos!
Olá, minha querida!
É tão bom tê-la por aqui.
Sim, as imagens são realmente belas... Vou garimpando aqui e ali (Google, face, etc.).
Quanto ao conteúdo, vamos desenvolvendo. Note que há "n" opções de artigos (vide a lista completa ao final do Blog). Os de Filosofia são um tanto mais densos, principalmente para quem não ainda não se acostumou à terminologia, mas creio que, aos poucos, dê para entender. É o que busco em meus artigos: nem tão inacessíveis e/ou complexos quanto os acadêmicos, nem tão ocos e baseados nos 'achismos' de jornais e revistas (exceto por um ou outro bom jornalista).
Consu é a alegria em pessoa, uma Alma rara, daquelas que a gente adora ter por perto porque nos faz melhor.
E nem se espante por aqui não haver tantos posts (apenas umzinho por mês) nem comentários. O ritmo é outro, mas parecido com meu Sol na casa de Touro, ou seja, devagar, ruminando, como diria o 'bigode'*.
Um grande beijo Jairene e, divirta-se!
lu.
(*) Friedrich Nietzsche.
"Da agonia, nos consolam melhor os deuses; À aventura, nos inquieta mais a filosofia."
Belíssima frase, Luh, e excelente texto! É interessante que, como diria Foucault, o mais interessante da história não são exatamente as continuidades, mas as descontinuidades que emergem como criações novas.
Beijos
Saiu na Folha SP desta semana o discurso do Getulio Vargas em sua formatura. Acredito, caso não o conheça, que possa lhe interessar. Claro, uma bela releitura seria interessante.
Oque é um mito e razão
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