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1 de ago. de 2011

As 5 Etapas do Movimento de Realização da Realidade - Parte I


“A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras.
Elas são nossa única realidade ou, pelo menos,
o único testemunho de nossa realidade". Octavio Paz

O que torna a realidade ‘real’? Em sua obra “Analítica do Sentido – Uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica”, Dulce Critelli, profunda estudiosa do filósofo existencialista Martin Heidegger (vide artigo abaixo, publicado em nosso Blog: http://www.lucienefelix.blogspot.com ), nos esclarece sobre a realidade e seu movimento de realização.

De acordo com esta corrente filosófica, a condição sine qua non para que algo seja percebido, ou seja ‘exista’, é a luz (do grego, phós). Luz, tanto do ser e dos seres que são e se dão a perceber, quanto do olhar humano “que se institui como sua clareira”, seu lugar de aparição.

Mas, embora seja o indivíduo quem vê, seu olhar não é individual. Existimos com os demais, ou seja, compartilhamos uma coexistência e esse ser-no-mundo com os outros, além de fundamentar e possibilitar o conhecimento é igualmente, fundamento para o aparecimento dos entes: “O olhar do homem é constituído por sua coexistência, que, como tal, é fundamento do movimento de fenomenização dos entes e do fenômeno.”, afirma Critelli.

Como não somos sós, é a coexistência que fundamenta o movimento fenomênico do mostrar-se/ocultar-se dos entes em seu ser, o ‘acontecimento’: “Pois é desde o que acontece que a possibilidade ontológica pode ser compreendida como possibilidade e, portanto, como fundamento desse acontecimento”, diz a autora.

Dessa forma, por estarmos concretamente no mundo com os outros, situados geográfica e historicamente (datados no tempo), instaura-se nosso duplo caráter, que é o de ser “o lugar, ou a clareira onde o ente pode manifestar-se para um olhar e, ao mesmo tempo, ser o olhar, ou a iluminação que provê esta mesma manifestação”.

Para que algo ‘apareça’ é necessário que tenha como origem a iluminação daquele que percebe, recolhe, apanha, e que esse apanhado seja compartilhado numa coexistência, cuja função é justamente permitir este mostrar-se fenomênico.

Em termos de realidade, é sendo um ser-no-mundo com os outros que o fenômeno É. Quando o ente aparece, ele já foi forjado como real. As coisas não se mostram primeiro para somente depois serem convertidas em realidade: “(...) a própria percepção de algo pressupõe que esse algo tenha sido o resultante de um movimento de realização”.

Chamamos a atenção para o fato de que esse movimento de realização, que é o que permite a aparição dos entes, “cujo fundamento e desdobramento são atemporais, existenciais e não meramente metodológicos” difere da compreensão metafísica.

Enquanto para a metafísica há o Ser (inapreensível), para a fenomenologia, isso não é absolutamente definitivo: muito do que não se abarcava antes, hoje é perfeitamente compreensível; do mesmo modo, há muito por ser revelado. Assim, metafísica e fenomenologia existencialista, diferem sobre a interpretação do que seja o real, a realidade.

Fenomenologicamente, o que torna os seres reais é:

1) Quando desocultado por alguém: desvelamento,
2) Ser acolhido e expresso através de uma linguagem: revelação,
3) Quando visto e ouvido por outros: testemunho,
4) Quando o testemunhado é referendado como verdadeiro por sua relevância pública: veracização e,
5) Uma vez publicamente veracizado, algo é efetivado em sua consistência através da vivência afetiva e singular dos indivíduos: autenticação.

Em virtude de limite, por ora, discorreremos sobre as duas primeiras etapas, ou seja, até o momento em que a existência de OVNI's e fantasmas (ou almas d’outro mundo) é possível: desvelamento (desocultamento) e revelação (palavra).

Desvelamento: enquanto as coisas não forem expostas à luz e desveladas (retirado o véu) por alguém, permanecem no reino do nada, ocultas. Mas o que for trazido à luz não permanece, necessariamente, desvelado para sempre, tampouco do mesmo modo.

Um exemplo dessa mutabilidade é a crença que os antigos gregos tinham de que a natureza era presidida por divindades. A ‘desocultação’ (desvelamento) dessas forças vitais se alteraram ao longo de nossa existência: “É toda uma trama de organização social, histórica, coexistencial que se estabelece a partir de cada uma dessas perspectivas.” Outrora deuses, ora arquétipos (junguiano), ora razão, etc., antes, pertenciam ao reino do nada e ansiavam pelo desvelamento.

Para o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), essas forças vitais abrangem todas as ações históricas (ele denomina de “Razão Absoluta”), nem míticas tampouco religiosas, mas algo “determinante, quase fatal, – irreprimível.” Universais e com poder de engendramento, nos movem, mesmo que não tenhamos consciência ou controle sobre elas: “(...) transcendem nossa mera vontade, posição, nosso saber e controle objetivo das situações.” É uma possibilidade.

Para a fenomenologia existencialista, o ente também se mostra quando volta para o escuro, para o reino do nada e fica encoberto. Também pode ser ignorado, esquecido, desentendido (compreendido e, depois, desaprendido) e até, por distração, ocultado.

O aparecimento das facetas ocultas dos entes se dá à luz do tempo do existir e não necessariamente do esforço racional e cognitivo: “A volta para o velamento que constitui o mostrar-se dos entes, o encobrimento de suas facetas, não é nada negativo, mas essencial.” Velar, esquecer, torna a existência mais suportável.

As coisas não se revelam no total de suas possibilidades, mas totalmente em uma de suas possibilidades: “Este movimento é existencial, temporal.” E o que aparece precisa de alguma duração para que possa chegar à realização: “A chance de conservação da faceta ou da possibilidade desvelada da coisa está dada pela linguagem.”

É a linguagem. Sendo assim, será NA e PELA palavra que o que foi desvelado dos entes poderá ser exposto. Daí, adentramos à 2ª etapa desse ciclo de movimento de realização da realidade:

Revelação: Confirmamos e conservamos a manifestação do que aparece através da fala: “A palavra é o duplo do ser”, diz o filósofo Merleau-Ponty. “A linguagem é a casa do ser”, afirma Heidegger.

A condição para que algo exista é poder ser apresentado pela linguagem. As coisas são através da fala. Do que não se fala sequer se cogita a existência. Mesmo que exista, não sendo verbalizado, não é satisfatoriamente revelado.

Nos relatos míticos, temos a união entre o criador e a criação por meio das palavras: “Através do falar, na existência humana, é que o ser das coisas pode ser veiculado. (...) Essa é a função dos argumentos, das teorias: a reunião dos significados das coisas, a fim de exibi-las em seu sentido, em seus nexos e possibilidades ininterruptas de aparecimento.”

Registrar conserva: “O desocultado precisa ser expresso em alguma linguagem para chegar a mais primária forma de aparecimento e manifestação.” Desvelar é comunicar, tornando comum. E é na linguagem que o significado das coisas pode ser trazido à tona.

O portentoso estatuto da palavra deve-se ao fato dela acolher, guardar, conservar e expor o ser que, fora delas, “podem estar por ai, mas não são o que são e como são.” A comunicação é fundamental para a revelação, para tornar os homens ‘humanizados’ e para possibilitar o terceiro momento no movimento de realização, que é o testemunhar.

Sem testemunho, o que foi desvelado e revelado se esvai, dissolve-se, dissipa-se, não se sustenta. Para a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975), o principal atributo do mundo é o fato de ele ser percebido em comum por todos nós.

Testemunhar, veracizar e autenticar são temas de nosso próximo encontro.

* Confira aqui como os bastidores da política e da economia internacional são desvelados, revelados e testemunhados: http://blogdoklebers.blogspot.com/


Dia 25 de agosto (5ª feira) - Tema: "Os 7 Pecados Capitais".
Pré-requisito: leitura prévia deste artigo (vide no final do Blog).

ATENÇÃO:

Em virtude da Palestra a ser proferida pelo Prof. dr. Alberto Bernabé, da Universidade Complutense de Madrid, um dos maiores estudiosos, hoje, do orfismo, virá a São Paulo para fazer conferências sobre o assunto, inclusive com as novidades que surgiram em novas tablitas encontradas nas últimas décadas em escavações, transferimos a data de nosso Café filosófico para o dia 25 de agosto, no mesmo horário.

Dia 18 (próx. 5ª feira), às 15 e às 19h: “La filosofía como iniciación órfica
Local: PUC-SP - Auditório, ao lado da Biblioteca do prédio novo.

10 comentários:

João Carlos Wanderico crosp 32141 disse...

Café Filosofico em SP!!
pô e como ficamos nos que nao moramos na bela city?? vai pensando nisso.
bjs
jcw

Luciene Felix disse...

John,
Vou pensar meu querido, pensar.
Tô na correria: terei que transferir novamente o "Café" porque haverá reunião das crianças amanhã.
beijos,
lu.

Ângelo disse...

Luciene, enriquecedor o artigo, contudo, como não poderia deixar de ser (rs, rs, rs), discordo de alguns pontos, sendo:
1 - a realidade de algo ou alguém, não é provada pela luz; em um mundo de cegos, eles seriam notados.
2 - o desvelamento não é também fator probatório de existência, de realidade, pois, cito o exemplo de corpos celestes ainda não avistados, porém, existentes; outro exemplo é a existência de sons inaudíveis a nós, que temos uma freqüência de captura de som, específica.
Beijos.

Luciene Felix disse...

Olá Angelo,

Bom tê-lo por perto!
Sem discordância não há discussão. E isso é triste, rs.

1. Sim, mas "epistemologicamente" (Teoria do Conhecimento) falando, até mesmo os sentidos, nos enganam. Descartes alicerçou isso (Discurso do Método)
Veja qui no blog: http://lucienefelix.blogspot.com/2008/01/descartes-o-mtodo-cartesiano.html

2. A fenomenologia endossa justamente esse seu raciocínio: não é porque não foram avistados que não existam, não estejam, etc., é que AINDA não foram revelados.

Um grande beijo e, depois de amanhã, confira a continuação desse post!

lu.

Luciene Felix disse...

Ops!

"o desvelamento não é também fator probatório de existência, de realidade (...)".

Não mesmo. Ao menos para a fenomenologia. Em Heidegger, faz-se necessário cumprir as 5 Etapas. Nem mesmo "Testemunhar" legitima o real, a realidade.

Semana passada, eu e duas amigas, Elaine e D. Sueli, testemunhamos a 'presença' do "Espírito" de um morto. Mas ainda não há como veracizar isso.

Beijos,
lu.

Ângelo disse...

1. Sim, mas "epistemologicamente" (Teoria do Conhecimento) falando, até mesmo os sentidos, nos enganam.
Concordo com esta frase, que os sentidos nos enganam. As coisas e seres são captados pelos sentidos, os quais nem sempre funcionam corretamente, e quando tal, há a possibilidade de falha no processamento mental.
Um exemplo singelo é aquela pessoa que avistamos, um pouco distante, e que aparenta ser alguém que conhecemos, inclusive, acenamos para tal; contudo, algumas vezes, em menos de segundo, percebemos a gafe.
A incapacidade de percepção de tudo e de todos e a ausência de conhecimento total sobre tais, deveria nos tornar humildes e cônscios de nossas limitações.
Bjs,
Ângelo.

Luciene Felix disse...

"A incapacidade de percepção de tudo e de todos e a ausência de conhecimento total sobre tais, deveria nos tornar humildes e cônscios de nossas limitações."

Faço das suas, minhas palavras!
Homem vem de húmus, Terra.
O que é de Gaia sem Ouranós?
Dito de outro modo, da Terra sem o Céu?

Bom exemplo! O inverso tb ocorre: quando os sentidos internos "subjugam" a ratio. Sim, há os sentidos "internos" e estes, tb "processam" conhecimento. (O coração tem razões...)

Homero os denominava "phrenas".
Platão: "phronesis".
Arizinho: "prudentia".
E ai, confundiu-se tudo. Ou, nem tanto.

Já escrevi sobre isso aqui: http://lucienefelix.blogspot.com/2008/11/prudncia-em-aristteles-e-questo-da.html

Um prazer essa prosa, amigo.

Beijos,
lu.
PS: Se puder me passar seu email (mitologia@esdc.com.br), lhe envio já, o próximo artigo.

Ângelo disse...

Oi; acabei de ler teu posto, só não entendi quem é Arizinho (algum professor de facu? rs, rs, rs).
Depois, vou ler o teu mais recente artigo.
A propósito, já acertei e errei baseado nos sentidos internos; são enganosos também.
Claro que você não os disse que eles não o são (enganosos). Não pense que estou afrontando; somente querendo aprender algo bom.
Bjs.

Ângelo disse...

Deixo aqui registrado um subjugamento da 'ratio'; misterioso, o encantador amor por alguém.
Como racionar tal sentimento?
Bjs.

Luciene Felix disse...

Angelo,

Ari, Arizin, Arizinho... é um modo carinhoso de me referir ao estagirita (da cidade de Estagira), Aristóteles.

São enganosos é? Vamos investigar, rs.

Nem aventaria tal postura, amigo (de afronta). Também vivo querendo aprender algo de bom.

"Raciocinar" tal sentimento? Eis, desde Homero, o maior desafio humano. Mas, cá entre nós, creio que este propósito deva ser perseguido. Ou isso, ou o Caos!

Se puder, ouça "A escolha de Páris", uma narrativa que fiz e disponibilizei no site da ESDC. É bastante elucidativa.

Ou ainda, o artigo "Guerra e Paz", aqui mesmo no Blog.

Me alegra sua participação, Angelo.

Beijão amigo!

lu.

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Eis que a Sabedoria reina, mas não governa, por isso, quem pensa (no todo) precisa voltar para a caverna, alertar aos amigos. Nós vamos achar que estais louco, mas sabes que cegos estamos nós, prisioneiros acorrentados à escuridão da caverna.

Abordo "O mito da caverna", de Platão - Livro VII da República.

Eis o télos (do grego: propósito, objetivo) da Filosofia e do filósofo. Agir na cidade. Ação política. Phrônesis na Pólis.

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As exposições mitológicas explicitam arquétipos (do grego, arché + typein = princípio que serve de modelo) atemporais e universais.

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