“A existência precede a essência” Martin Heidegger (1889-1976)
“A existência precede e governa a essência” Jean-Paul Sartre (1905-1980)
Por mais de dois milênios, órfãos e perplexos, prostamo-nos à soleira da porta da Metafísica (me ta tá physica, do grego, o que está além, acima da physica), mendigando conhecer sobre o Ser, o mundo e a vida, presumindo-os existentes (reais) independentes da presença desse angustiado desejoso de saber.
Desde Platão e Aristóteles, a concepção que temos dos, aparentemente intransponíveis, mistérios da vida (vide as big questions: quem somos, de onde viemos e para onde vamos?) é de inacessíveis ao intelecto.
Para muitos, a impenetrabilidade de uma única, eterna e imutável “Verdade” revela-se reconfortante. Mas esta, reivindicando para si “inquestionabilidade”, torna-se dogmática.
Ousando discutir o quão única e absoluta a metafísica não é, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), em sua obra “Ser e Tempo”, desconstrói o arcabouço do saber metafísico e erige uma nova ontologia (ciência do Ser enquanto Ser), inaugurando uma via de conhecimento fundada numa episteme (ciência da Teoria do Conhecimento) fenomenológica.
Epistemologicamente (ramo da Filosofia que se debruça sobre a questão do conhecimento), por milênios, permanecemos enredados na crença e na busca de uma única via de acesso ao Ser dos entes e à sua Verdade: inteligíveis, mas indizíveis.
E do Ser, que É, desde Parmênides, emudecido [“Eu sou o que sou”, disse Deus a Moisés], só se podia pensar, sendo o “Pensar”, limitado pela incapacidade de “dizer”, confinamo-lo.
Apenas das coisas que são, dos entes que se dão a conhecer, via lógos, através da linguagem, afirmamos isso ou aquilo. Mas, mesmo antes de indagar o que é, somos! Ser, existir é condição humana ontológica (fundante): 1º somos, existimos, depois pensamos “o que”, ou melhor, buscamos QUEM somos.
Imbuídos de desvendar que critérios adotar para que, nesse mundo inóspito e incerto, a perspectiva de alguma segurança nos fosse acenada, estabelecemos que somente a precisão metodológica do conceito (representação) garantiria ao conhecimento humano sua imutabilidade, unicidade e absolutidade. Eis a metafísica legada pela tradição.
Confortou-nos do incômodo que é o inefável, intangível, impalpável, invisível e indizível (metafísica) o “Demiurgo” (Platão), conceituado/representado, como sendo uno, eterno e incorruptível (Ideia, lugar da manifestação da Verdade de tudo o que é), o Movente Imóvel (Aristóteles), que estabelece que pertence ao intelecto esta função do conhecimento e, também o “Pai” do racionalismo, o filósofo francês René Descartes (1596-1650), que modulou este intelecto “cujo único procedimento aceitável é o do cálculo e do controle lógico-científico da realidade (...)”.
Descartes persegue e encontra o porto seguro para o Pensar, de fora, exterior e à distância, para assim, poder olhar e examinar o mundo, a existência e tudo o que dela faz parte: “Um ponto fora do mundo que ‘ex-tranhe’ o homem de suas situações de vivência, de suas sensações e sentimentos”, numa palavra, da realidade em que se circunscreve.
Retirado do homem as condições básicas e elementares de sua humanidade, instala-se o Cogito, ergo sum (Penso, logo existo): “um poder humano, embora sem humanidade, equívoco quanto à sua soberania e sua independência em relação às condições ontológicas plenas do homem”. Mas o contexto fundamental, ontológico do Ser não é somente o Pensar, é também Existir.
Sob a égide do cogito, o ocidente moderno aceitou esta via como a única perspectiva adequada, viável e válida para a aproximação entre homem e mundo e o que este poderia vir a saber, inclusive, dele mesmo.
Ao longo da história da episteme ocidental, na busca por um alicerce, o homem “baseou-se na dúvida de si mesmo, lançando para fora de si (de sua ontologia, das condições nas quais a vida lhe é dada) a possibilidade de qualquer domínio da realidade, inclusive de suas ideias.”
Para o “Pensar Metafísico”, a validade de um conhecimento é assegurada pela construção de conceitos dentro de parâmetros lógicos. Obviamente, isso nos priva da intimidade que possa haver entre nós e o mundo, ou seja, da experiência que possa advir da fruição de estar no mundo.
Segundo afirma Dulce Critelli, em sua obra “Analítica do Sentido – Uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica”: “A dificuldade da episteme metafísica em aceitar a relatividade da perspectiva e da verdade, levando-a a negá-las, está já na origem mesma de seu nascimento: a perplexidade diante da aparição, da mutabilidade e da degeneração dos entes sensíveis (Platão); e a insegurança emergente diante da descoberta dos sofistas de que, sendo o ser dos entes inefável, as coisas são o que se “bem” diz que elas são (oratória).”
Negar a relatividade da perspectiva da verdade é justamente o que constitui a episteme metafísica. Para a fenomenologia, a insegurança dessa relatividade é própria, inerente ao existir (ser): “A existência precede a essência”, diz o Existencialismo.
Chamamos a atenção para o fato de que, instrumentalizada dessa forma, a ratio (reconhecidamente planejada e estruturada) nos fornece UMA das alternativas de conhecimento, de aproximação do real, da realidade: “A insegurança ou a fluidez do aparecer dos entes e das possibilidades de apreender e expressar seu ser não são, por si sós, indicativas da falsidade de uma perspectiva, nem da irrealidade de um ente qualquer. Também não indica, como queriam os sofistas, a inefabilidade dos entes”.
A dificuldade que temos de apreendermos a aparição dos entes em sua totalidade se deve justamente aos modos constitutivos e originários do mostrar-se dos entes e do pensar, que são igualmente inseguros e fluídos.
Ao pretender superar a instabilidade do ser e dos seres que são, a metafísica alicerça a possibilidade de conhecimento sobre a segurança da precisão metodológica do conceito, como se com a razão (Cogito, lógos, ratio), com uma forma ‘lógica do Ser’, a permanência estivesse assegurada. E está, desde que limitadoramente, sob este prisma.
Reiterando, a fenomenologia existencial instaura possibilidades de conhecer nos angustiantes modos infindáveis de se Ser: “Enquanto a metafísica reconhece a possibilidade do conhecimento fundada na relação entre o sujeito epistêmico [cognoscente] E seu objeto [cognoscível], tomando-a como resultante de uma produção humana – a representação –, a fenomenologia funda tal possibilidade na própria ontologia [modo de ser] do homem, pois ela é uma das condições em que a vida nos é dada.”
Para Heidegger, a relatividade dos entes é a condição de manifestação deles mesmos, diz respeito à provisoriedade aos quais estão sujeitos, uma vez que tudo o que é vem a ser e permanece sendo “no horizonte do tempo e NÃO do intelecto, e em seu incessante movimento de mostrar-se e ocultar-se.” Para o existencialista, o que está oculto é o nada, sendo o homem o sujeito epistemológico, ele cria a realidade, dizendo melhor, a descobre.
Veja neste Blog, artigo sobre "Descartes e o Discurso do Método".
15 comentários:
Oi Lú!!
brilhante seu post.
a seguinte frase inicial, de muitas, é realmente impressionante e permeia toda a discussão :
"órfãos e perplexos, prostamo-nos à soleira da porta da Metafísica , mendigando conhecer sobre o Ser, o mundo e a vida, presumindo-os existentes (reais) independentes da presença desse angustiado desejoso de saber."
sofro desse mal!
bjs e parabéns!!
JCW
Não daria pra colocar a questão nos termos mais ou menos assim: o que vem em primeiro: o ovo ou a galinha?
Oi JCW querido,
A Filosofia também sofre. Por enquanto. Todos nós!
Difícil encontrar as palavras certas para explicitar essa proposta de Heidegger.
Ao invés do homem colocar-se de fora, como um expectador privilegiado, perguntando pelo “Ser” e pelas coisas que são (entes), ele nos trouxe para dentro da questão.
Convém ressaltar que Heidegger não refuta Descartes (ninguém teria a ingenuidade pleitear esse intento).
O estatuto do lógos é inquestionável, até porque é ele (o lógos) o ‘mecanismo’ que responde (embora, através de um “quem”).
Mas não é único, absoluto. Soberano é o Homem. E o ‘nôus’: poder de intelecção que está na Alma (“O coração tem razões...”).
Somos medo, desejo (diz uma música do Lulu Santos), imaginação, enfim, sentimentos, intuições e tantas outras facetas ainda não desveladas, reveladas, testemunhadas, veracizadas e autenticadas.
Esse post antecede uma questão intrigante: como se dá o movimento de realização da realidade.
Fenomenologicamente, o que torna os seres reais é:
1) quando desocultado por alguém: desvelamento,
2) ser acolhido e expresso através de uma linguagem: revelação,
3) quando visto e ouvido por outros: testemunho,
4) quando o testemunhado é referendado como verdadeiro por sua relevância pública: veracização e
5) uma vez publicamente veracizado, algo é efetivado em sua consistência através da vivência afetiva e singular dos indivíduos: autenticação.
Intento explicitá-las (mas sem cansar o leitor). Como vê, há muito sobre o que nos debruçarmos.
Querido “Da lata”,
Claro que dá para colocar a questão como aventas!
Mas só de brincadeira. E assim mesmo, pode acontecer de não entenderem a piada.
E a gente perder o amigo.
Beijos e muito obrigada por terem postado amigos.
Lu.
Claro, que a última coisa que queremos é perder amigos. O problema é que, pra mim, o seu post é muito difícil, porque me remete a vários conceitos e idéias que pouco domino. Era só isso.
Um grande abraço e que continue no seu ritmo.
Minha tao querida Lu, eh um enorme privilegio ter acesso aos seus textos. Espero por eles ansiosamente e o deste mes merece atencao especial. Obrigada. Abracos, Adrianne Antony Goncalves
Marco querido,
Sim, é melhor perder a piada.
Parece difícil porque, como toda e qualquer área, tem seu vocábulo próprio. E também, como nas demais disciplinas, um pensador dialoga, responde, se reporta a algum (ns) outro(s) que o(s) antecedeu (deram).
O pensamento do mundo Ocidental tem registro de nascimento (com os pré-socráticos), alinhavar Estruturas e Sistemas, percorrendo 2.500 anos de trabalho é árduo, requer décadas de estudo constantes.
Cada Filósofo descortina uma magia: vale a pena conhecê-los.
Meu intento aqui é justamente iluminá-los mais ainda, trazendo o legado.
Mas sou iniciante, não especialista. Não tenho uma tese filosófica a propor. O ritmo que almejo é o de despertar o interesse do leitor, sem isso, meu trabalho é de pouca valia.
Saber e não conseguir transmitir o que se descobriu é muito frustrante amigo. Não sei se o tranqüiliza, mas nada sei de sua área, Economia.
Mas ainda vou estudar, ao menos as grandes obras, pois são relevantes para a Filosofia, principalmente nas área de Estética, Ética e Política.
Minha tão querida Adrianne,
Sou eu quem se sente privilegiadíssima por uma leitora tão interessada e acolhedora quanto você!
O deste mês é ½ xarope: muito ‘filosófico’. O certo agora seria pegar um mito ou uma comédia para espairecer um pouco e depois retomarmos o descasque desse abacaxi, rs.
Muitíssimo grata por terem postado amigos!
Um grande beijo e que os deuses os abençoem, sempre.
Lu.
Longe de mim desanimá-la ou colocar freios. Pelo contrário. Volto a dizer, o post é dificil, porque me daria um trabalho enorme ter que reconstruí-lo em seus conceitos. O problema é meu e não seu. Claro, como um leitor muito do preguiçoso, tento explorá-la ao máximo. FInalmente, um conselho amigo que recebi de um grande amigo: não encucar com comentários em blog. Eles podem parecer uma coisa e serem outra. Talvez seja coisa do signo e da sensibilidade feminina levar muito a sério até as pequenas coisas. Continue do jeitinho que és, porque o sucesso do seu blog é merecido: muito trabalho e amor.
bjos em seu coração, com alegria de quem te admira.
Uma observação adicional. Não vejo interesse em ler os grandes Autores clássicos em economia. A razão é simples: ter de conhecer o presente para identificar erros, segundo novas perspectivas que comandam suas idéias presentes. Além disso, teria que conhecer o passado para contextualizar o assunto. Este é um caminho dificil até para economistas bem treinados. Minha dica: fique nos seus assuntos e veja os problemas econômicos pela sua ótica. Temos que fazer escolhas. O dia só tem 26 horas.
Sim meu amigo, escolher.
Se interessa, veja isto em Kierkegaard (vôzinho do Existencialismo, postei algo aqui, mas o certo é pegar "Ou isto ou aquilo", se não me engano).
Depois, Sartre retoma (tb há algo aqui no Blog, acho que é "Entre quatro paredes").
Vou registrar suas dicas, só não posso prometer seguí-las, rs.
É que eu espero ter muito tempo ainda, para aprender, apreender.
Um grande beijo em seu cuore, com o carinho de quem tb o admira e quer bem.
lu.
“É que eu espero ter muito tempo ainda, para aprender, apreender.”
Lendo isso me deu uma vontade enorme de falar algo. Vou deixar toda a psicologia pedestre que me acompanha, em festas ou funerais, para lhe dizer algo que é verdadeiramente puro e se depara com os astros. O tempo para aprender é eterno, mas não se faz apenas no silêncio das leituras e sim, principalmente e profícuo, na tentativa de se fazer algo, em atendimento a um oficio pretendido. Apreender não é um fim em si mesmo. Adoro a idéia de se construir coisas bacanas com poucas idéias, em nome de uma tal de eficiência que pode até ser o fundamento maior do que chamamos ser um indivíduo inteligente. No final da minha aritmética vejo que seus posts exalam , a seu jeito e querer, exatamente o que digo. Se isso é aprender, que continuemos apreendendo.
Olá darling!
Adorei sua postagem, como sempre, você dominou o assunto com total maestria.
Olha, não sou de Sampa, mas vou sempre... Assim que tivermos uma oportunidade adorarei marcarmos um café sim... Será um prazer estar sua companhia.
Um abraço linda!
Ótima semana!
Lord Gloss
=^.^=
Lord Gloss,
Maestria é esse bom humor!
Seu Blog é ímpar: adooooooro!
"Mi casa es su casa": esperarei ansiosa por esse café (coca-cola, vinho ou champagne, rs)!
Mil beijos,
lu.
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Caçamba Marco,
Somente agora li o que postou por último aqui.
Show! Valeu amigo!
Beijos, beijos,
lu.
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Kisses, lu.
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