“Respeitar tratados e
convênios não é questão de direito, é questão de conveniência.”
Thomas Hobbes.
Sabemos que nossas ações (decisões, atitudes) são precedidas de
uma espécie de sensação que denominamos “vontade”, que ela nos
move, pois sem a mínima vontade não há empenho sequer para deixar
os lençóis pela manhã, que dirá empreender tarefas mais árduas,
mesmo que urgentes.
O matemático, teórico político e filósofo inglês Thomas Hobbes
(1588-1679), em sua obra Liberdade e necessidade ponderou
sobre o que estaria por trás da vontade, que é último elo na
cadeia de deliberação (reflexão) a condicionar nossas ações
diante das opções que enxergamos. Ah, a vontade, o querer ou não
querer... Queres refletir?
Diante de um impasse, de uma questão que exija que reflitamos e que
ponderemos sobre as opções existentes estaremos também, por um
momento que seja, num estado de indeterminação em relação ao fim
de nossas escolhas, ou seja, os resultados, as consequências de
nossos atos ainda não estarão dadas ao nosso entendimento.
Nesse estado de indeterminação, de certa “liberdade” que Hobbes
denomina de “estado cinético” ainda não prevalece a expressão
que o inglês chama de “conatus”, que é uma sensação
constituída como vontade. Conatus então é a palavra que o
estudioso usa para designar a prevalência, a supremacia de uma
sensação sobre as demais.
Antes de agirmos, ponderamos e, em relação a um objeto (ou
situação), percebemos que uma determinada sensação – conatus
– prevalece sobre as demais, findando o processo de deliberação e
decorrendo daí, a ação escolhida. Essa escolha é livre? O que
determina ou induz nossas predileções, o que suscita nossa VONTADE?
Hobbes diz que mesmo nas ocasiões em que agimos por medo de alguma
represália, num determinado sentido, somos livres sim, porque sempre
podemos contar com a opção de agir de outro modo: “Assim também,
às vezes, só se pagam as dívidas com medo de ser preso, o que,
como ninguém impede a abstenção do ato, constitui o ato de uma
pessoa em liberdade”. De fato, embora convenha liquidar os débitos
que contraímos, somos livres para não fazê-lo.
No entanto, segundo Hobbes, uma ação é considerada livre na medida
em que o seu transcurso não é obstaculizado. Entretanto, salienta
que a ação é determinada por uma causa imediata, a vontade,
isto é, por uma sensação que preponderou sobre as demais
(conatus) no processo deliberativo. Sendo que a deliberação
é concebida como uma cadeia de sentimentos antagônicos – desejos
e aversões – causadas por um objeto do querer.
As sensações (medo, desejo, aversão, etc.) suscitadas pelos
objetos que nos cercam são como imagens reproduzidas na faculdade da
sensação pela memória que temos de nossas experiências com eles:
“Pois se um homem está deliberando sobre qual melhor estratégia,
ou conjunto de ações, para obter a vitória em um combate [por
exemplo], está necessariamente ponderando sobre elementos
relativos à sua experiência passada em combates”. E esses
elementos serão acompanhados de desejo ou aversão conforme o que
tiver sido preservado na memória sobre determinado objeto ou
situação.
Suponhamos que, ao rememorar fatos e ações passadas que nos
trouxeram algum sofrimento ou fracasso, surja determinada imagem
acompanhada por sentimentos ou sensações de medo e temor. Nesse
caso, a aversão imperará.
No caso da suposição acima descrita, podemos constatar que a
liberdade não significa autonomia da vontade frente às relações
causais, pois a sensação de medo (ao culminar em aversão),
determinará o sentimento da vontade: aversão.
O que quer que tenhamos vivenciado no passado (tanto nosso, privado –
enquanto indivíduos –, ou seja seres únicos, indivisíveis,
quanto – enquanto membros de uma sociedade) comporá aquilo que
chamamos de experiência. Aqui vislumbramos o entrelaçamento entre
nossas ações (fruto de nossa vontade) atrelada às nossas
experiências.
O filósofo nos explica que “A sensação que conformará a vontade
ao término da deliberação tem necessariamente sua causa em fato ou
fatos repetidamente vivenciados e resguardados, como uma corrente de
sensações na memória, o que compõe a sua experiência”. O que
significa que deliberamos (refletimos) no presente ponderando sobre
fatos e sensações passados preservados em nossa memória.
É que somente à partir da experiência é que os objetos (ou
situações) são assinalados com as qualidades de sentimentos e
sensações que serão como marcas em nossa psique. Isso
porque os sentimentos ou sensações produzirão efeitos sobre nosso
aparato sensível (Homero, o maior poeta grego diria, nos phrenas).
Graças a esse aparato sensível, esquivamo-nos de situações que
insinuem desarmonia, denotem belicosidade ou promovam algum risco ao
nosso conforto, à nossa segurança e tranquilidade, sem falar de
tudo o que ameace a preservação da própria vida.
Segundo Hobbes, agimos sempre orientados pelo impulso primordial que
é o de preservação da vida: “Assim sendo, a causa imediata da
ação – a vontade – sofre uma determinação interna e natural”.
Trata-se do conatus ao qual nos referimos acima, da supremacia
de uma sensação.
Entretanto, ele ressalta que se realizarmos o percurso contrário e,
partindo dos efeitos (as ações), ascendermos em direção às
causas de nossas ações, passando pela causa imediata (a vontade) e
chegarmos às causas que produziram as sensações que compõem o
expediente de deliberação, obteremos uma cadeia de causas e efeitos
que acabará por se inscrever em outra cadeia causal maior, que
conforma o mundo. Nossa vontade é livre sim, porém, circunscrita
num todo maior.
Quanto ao estatuto da natureza da ação humana, Hobbes insiste que
quando um homem manifesta desejo por alguma coisa pela qual não
tinha antes desejo e vontade, a causa dessa vontade não é a mera
vontade em si mesma, mas alguma outra coisa (ou causa) anterior, que
atuou sobre ele e da qual ele não tem consciência imediata.
Sendo assim, a tese que Hobbes defende é a de que a ação humana
não é livre, no sentido de ser derivada de uma vontade
absolutamente incondicionada, porque nossas ações são
condicionadas pela ordem causal (sucessões de causas/efeitos) dados
pela natureza e seus imperativos, a saber, o medo maior, que é o de
morrer.
O medo da morte é tão evidente que geres, a decrépita
velhice (indício líquido e certo da proximidade de finitude)
suscita a vontade pelo combate. Não surpreende que um dos maiores
investimentos humanos seja – cada vez mais – na promoção da
saúde e da juventude.
Ao romper com a relação de causalidade, romperíamos com a geração
e, onde não há geração, diz ele, não há, correlativamente, a
possibilidade de conhecimento filosófico.
Concluindo, somos livres para agirmos conforme nossa vontade, claro.
Mas ela, a vontade, não está desvinculada dos sentimentos e
sensações suscitados pela memória que temos de nossas experiências
passadas, registradas em nosso (Freud será leitor de Hobbes)
inconsciente.
Cada um de nós mantém, no interior de nossa vida em sociedade, a
liberdade de decidir sobre os desígnios de nossas ações. Somos
livres, inclusive, para optar pela recusa em obedecer e seguir as
normas já conformadas em nosso meio social. A fundação do Estado
subjaz justamente nessa liberdade (no risco constante de
desobediência), zelando para que (pelo seu poder) a
incompatibilidade entre o que queremos e o que nos é permitido
querer seja minimizado.
É esse acordo entre as vontades dos agentes – nós,
enquanto indivíduos, repletos das mais diversas (lícitas e
ilícitas) vontades – e a sociedade (na pessoa do Estado)
que permite que realizemos nossas atividades, desfrutemos de conforto
e tranquilidade. Com toda liberdade possível, é claro.
Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana
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Contato: mitologia@esdc.com.br
2 comentários:
É impressionante como muitos filósofos antigos apresent obras de grande cunho psicológico. E pensar que alguns cientistas menosprezam, equivocadamente, a importância da filosofia. Ótimo texto Luciene!
Um dos três Contratualistas que contribuiu de maneira notável para a humanidade.
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