“(...) os homens, tendo
em vista conseguir a paz, e através disso sua própria conservação,
criaram um homem
artificial,
ao qual chamamos Estado,
assim também criaram cadeias
artificiais,
chamadas leis
civis
(...)”. Thomas Hobbes.
No artigo anterior (AQUI), Freud deixa claro o quanto somos bélicos,
violentos, hostis. E esclarece também que as penalidades previstas
nas leis visam inibir os excessos mais grosseiros de nossas
brutalidades, ressaltando, entretanto, que “a lei não
é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e
refinadas da agressividade humana”. As denúncias de assédio
moral, por exemplo, evidenciam a sutileza de tais perversidades.
Realista, o pai da psicanálise conclui que “Chega a
hora em que cada um de nós tem de abandonar – como sendo ilusões
–, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes,
e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua
vida pela má vontade deles.”
É com a constatação dessa
desumanidade que a civilização funda e tenta lidar com o Estado,
essa espécie de mega “pessoa jurídica artificial”. O Estado,
que é conduzido por “autoridades” (no caso das democracias)
legitimadas por seus “súditos” (através dos que elegemos para
nos representar) e instituído.
E
assim “O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades
de felicidade por uma parcela de segurança”, como diz Freud,
leitor do matemático e filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679).
Mas o que é o Estado? O que o sustém e, convém ou não – sim, ao
Estado também! - responder e ser penalizado por suas ações
arbitrárias?
Para pensar esse pacto social
entre o Estado e as pessoas governadas por seus ditames – tão
negligenciadas como denuncia o exorbitante número de imigrantes e
refugiados no mundo atual –, trazemos algumas ideias de Hobbes,
pois aviltados em sua dignidade, os imigrantes regressam ao estado de
natureza e, como cada um é seu próprio juiz, se veem obrigados a
agir conforme o que julgam ser a melhor saída (literalmente) a fim
de preservar suas vidas. Nada mais natural e compreensível.
O estado de guerra, que
segundo Hobbes não se caracteriza – necessariamente – por um
conflito empiricamente dado, mas onde basta haver uma situação de
hostilidade potencial, nos autoriza ao que for possível para nos
mantermos vivos.
Óbvio
que todos nós, enquanto racionais, concordamos que – terrível –
a iminência de guerra é o quadro mais temido, pois acena com a
morte violenta de milhões inocentes. É por isso que nossa razão
calcula que devemos nos empenhar ao máximo para evitar tamanha
irracionalidade. Eis o télos
(do grego propósito, finalidade) do Estado.
Artifício social, o Estado político é uma espécie de artefato,
uma “pessoa civil”, uma ficção, um construto, em virtude do
qual abandonamos nossos interesses enquanto indivíduos a favor de um todo maior, do grupo ao qual pertencemos.
E não podemos furtamo-nos
a exigir desse grupo maior do qual fazemos parte a primazia pela
harmonia, o sublime, repudiando o bestial em seus atos/éthos.
Até porque, “A existência do Estado revela a dependência da
relação com os membros que o compõem e sua finalidade última está
justamente na preservação da vida de cada um de seus membros
(...)”.
A intencionalidade comum aos seres humanos é sempre a
preservação da vida, o bem estar e a paz. Instituir e promover medo
e terror, obrigando seus membros às fugas desesperadoras é
contrariar exatamente o cerne de sua criação e razão da existência
do Estado.
Considerando que deliberamos (pensamos, raciocinamos, ponderamos)
sobre nossas ações futuras (ainda inexistentes), sobre aquelas
decisões e atitudes que ainda estão abertos aos caprichos do nosso
livre arbítrio, ou seja, projetados para um vir-a-ser,
a existência de uma instância superior, “soberana” (no caso, o
Estado político) é caudatária (carrega, ampara, segue, é
ancoradouro) das intenções e das ações humanas.
Como resume bem o estudioso Júlio Bernardes: “O Estado político,
desde sua gênese, está lógica e ontologicamente condicionado pela
existência dos seres humanos, quer no momento específico de sua
confecção – o contrato – quer pela finalidade que determina o
sentido de suas ações (…)”.
A existência do Estado, salienta, depende do esforço que este
realiza para a distribuição de força ou poder para as partes que o
constituem, distribuição essa que se dá na forma de benesses
(benfeitorias) que incrementam as condições pelas quais cada ser
humano pode manter uma vida relativamente segura e confortável.
As ações do Estado (Governo) passam a representar de forma absoluta
a vontade dos autores da representação (o povo) e a transferência
de direito, por meio da autorização, cria simultaneamente o objeto,
isto é, o Estado.
Promover condições para uma vida confortável e livre das ameças
de violências e guerras depende, necessariamente, das decisões do
Estado.
Sendo assim, como aponta Júlio Bernardes, a paz efetivada pela
soberania é condição necessária para o bem comum. Entretanto, o
desenvolvimento das condições que podem implementá-la é obtido
pela ação livre dos indivíduos, que tendem naturalmente para isso
no interior da sociedade civil organizada.
Para Hobbes, fundamental é que o Estado seja concebido como uma
pessoa que delibera e que o resultado dessa deliberação seja por
todos acatado. Nas repúblicas democráticas esse processo de
deliberação pode ser bem complexo e moroso, pois transcorre por
várias instâncias.
No entanto, uma vez deliberado, o Estado passa a constituir sua
vontade, reflexo dos anseios de seus membros: “O Estado regra as
ações que atentam ou são contrárias ao bem comum”, afirma
Hobbes.
Artifício humano, esse Estado hobbesiano é o que possibilita o
desenvolvimento das artes, da ciência, do trabalho e do comércio,
enfim, de tudo aquilo que repousa sobre a iniciativa e o exercício
das faculdades naturais de cada homem, afirma Bernardes.
Não obstante, estas atividades desenvolvidas no interior da
sociedade civil repousam na liberdade privada dos indivíduos, que
tendem por natureza para o prazer e o conforto, isto é, para a boa
vida.
A guerra revela características primitivas e instintivas (“humano,
demasiado humano”), é a situação onde não há lugar para os
resultados do engenho humano, pois atacando ou se defendendo “o
homem não humaniza o mundo”.
Thomas Hobbes diz que na guerra não há “lugar para a indústria,
pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da
terra, nem navegação, nem uso de mercadorias que podem ser
importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem
instrumentos (...); não há conhecimento da face da Terra, nem
cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade...”.
Diante de tamanha barbárie urge atentarmos ao fato de que numa
sociedade globalizada como a atual, quando o Estado atenta contra
seus integrantes e os induz à desesperadora condição de refúgio,
atenta também contra cada um de nós, enquanto seres humanos, todos
nós acabamos por nos tornar vítimas das ações de tiranos.
Os homens obedecem as leis por medo da punição. “É por si só
manifesto que as ações dos homens procedem de sua vontade, e essa
vontade procede da esperança e do medo (…) devemos providenciar
nossa segurança, não mediante pactos, mas através de castigos
(…).” Quando um Estado se revela perverso, barbarizando, urge
impor as penas correspondentes.
Como apelo, vale suscitar a compaixão nas sábias palavras do
filósofo e economista Adam
Smith (1723-1790): "Independente de quão egoísta possa
ser o homem, há evidentemente um princípio natural que o faz
interessar-se pela sorte dos outros e considerar sua felicidade
necessária para si, mesmo que nada obtenha dela além do prazer de
vê-la". Cuidar dos seres humanos é zelar por nós mesmos.
Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana da
Galleria Borghese, Roma
Confira vídeos no youtube.
Um comentário:
Como é um assunto em voga (espinhoso?) me impressionei como você o desenvolveu com tanta maestria (+ tato e conhecimento). Ficou um belo trabalho e eu orgulhosa de poder lê-lo. Parabéns! Bjo Nac
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