“Amizade nutre-se de comunicação.”
Montaigne
O humanista, filósofo, jurista e escritor francês Michel de
Montaigne (1533/1592) foi pioneiro no gênero literário que
denominamos “ensaio”. Ensaios, do francês “essais”,
designa textos sobre algum tema que se desenvolve de forma mais livre
e descompromissada, sem que seja necessário um método rigoroso do
ponto de vista acadêmico, ou reivindique alguma conclusão final.
Dos “Ensaios” de Montaigne, trazemos uma reflexão sobre o
capítulo intitulado “Da amizade”, onde, abalado pela perda de
seu querido amigo Étienne de La Boétie (1530-1563), o autor
discorre sobre esse tema tão precioso, pois como afirma seu
compatriota François de La Rochefoucauld, “A amizade, depois
da sabedoria, é a mais bela dádiva feita aos homens”.
De início, a fim de evitar frustrações em relação às
expectativas, convém esclarecer que aquele famoso “amigo de fé,
irmão, camarada”, enfim, amigo mesmo, de verdade, é algo
raríssimo.
Embora consideremos ter “muitos amigos”, assim como nem todos são
abençoados em – por exemplo –, nascer no seio de uma família
amorosa e responsável, de ser agraciado com um matrimônio feliz ou
de ter seus esforços profissionais devidamente reconhecidos e também
recompensados, vivenciar a amizade verdadeira é uma dádiva.
Montaigne esclarece que o Ensaio redigido por La Boétie (Discurso da
Servidão Voluntária, já tratado AQUI) foi o ponto de partida desta
amizade durou o quanto Deus permitiu. Ressalta que são muitas as
circunstâncias necessárias para que esse sentimento se edifique.
Afirma que a amizade assinala o ponto mais alto de perfeição na
sociedade e que a natureza parece muito particularmente interessada
em implantar em nós a necessidade dessas relações. Chama a atenção
para o fato de que em geral, sentimentos ao qual damos o nome de
amizade, quando nascidos da satisfação de nossos prazeres, das
vantagens que usufruímos, ou de associações formadas em vista de
interesses, são menos belos, menos generosos, pois essas tem outras
causas, visa outros fins.
De fato, afeições ditadas pela natureza, pela sociedade, pela
hospitalidade ou ainda ditadas pelas exigências dos sentidos, não
atingem o ideal que implica numa verdadeira amizade.
Esse tipo tão distinto e peculiar de amizade à qual Montaigne se
refere não há como existir nas relações entre pais e filhos
porque entre esses é mais o sentimento de respeito que domina.
Amizade nutre-se de comunicação, insiste, e, convenhamos, não há
como estabelecer-se comunicação nesse domínio (de vínculo filial)
em virtude da grande diferença que existe, sob todos os pontos de
vista: “e esse intercâmbio de ideias e emoções poderia por vezes
chocar os deveres recíprocos que a natureza lhes impôs, pois, se
todos os pensamentos íntimos dos pais se comunicassem aos filhos,
ocorreriam entre eles familiaridades inconvenientes”.
Até porque, diz o filósofo, uma das primeiras obrigações da
amizade é dar conselhos, formular censuras, o que temos que
concordar que seria inapropriado dentro de tal relação.
Embora tanto ele quanto La Boétie tenham empregado o nome de “irmão”
um ao outro, por considerar esse nome belo e digno da maior afeição,
Montaigne salienta que entre irmãos de verdade, a comunidade de
interesses, a partilha de bens, a (eventual) pobreza de um como
consequência da riqueza do outro, destemperam consideravelmente essa
união formal.
Diz-nos que é a correspondência dos gostos que engendra essas
verdadeiras e perfeitas amizades e, naquelas que nos impõe a lei e
as obrigações naturais (no ambiente estudantil, de trabalho ou nos
encontros sociais e de lazer familiar, por exemplo), nossa vontade
não se exerce livremente, elas não resultam de uma escolha e nada
depende mais de nosso livre arbítrio que a amizade e a afeição.
Quanto à possibilidade de amizade com uma mulher, ressalta que essa
afeição, embora seja proveniente de nossa escolha, não poderia
comparar-se à amizade nem substituí-la: “pois somos também
conhecidos da deusa que mistura um doce amargor às suas
preocupações: ela é mais ativa, mais aguda, mais áspera; é uma
chama temerária e volúvel, agitada e versátil; chama febril,
sujeita a intermitências de temperatura e que só nos prende por uma
parte de nós”, concluindo que o amor é, antes de mais nada, um
desejo violento do que nos escapa.
O calor da amizade, diz, estende-se a todo o nosso ser, é geral e
igual, temperada e serena, soberanamente suave e delicada, nada tendo
de áspero nem de excessivo, cresce com o desejo que da amizade
temos.
Pondera que a verdadeira amizade eleva-se, desenvolve-se e se amplia
na frequentação, é de essência espiritual e a sua prática apura
a alma. Distinguindo as inúmeras afeições passageiras, da
verdadeira amizade, Montaigne nos enleva ao afirmar que essa última
é cheia de nobreza, que mantém-se sempre nas regiões elevadas.
Ainda quanto à possibilidade de amizade entre um homem e uma mulher,
ele pondera que, SE se pudesse formar com uma mulher, livre e
voluntariamente, semelhante ligação, em que não apenas a alma
provasse plena satisfação mas também o corpo encontrasse seu
prazer, em que cada qual assim se entregasse por inteiro, a amizade
seria mais perfeita e total; mas todas as escolas filosóficas da
antiguidade concluíram ser isso impossível.
Montaigne condena a “philía” que chama de delírio
inspirado pelo filho de Vênus (Eros), esse gênero de licenciosidade
contra a natureza que era permitida entre os gregos, mas que nossos
costumes reprovam com razão, pois não é pelo espírito que o
adolescente, objeto dessa paixão, podia inspirá-lo –, pois ainda
era jovem demais e em vias de desenvolvimento –, mas pelos
atrativos do corpo.
Citando Cícero, ele diz que: “A amizade atinge sua irradiação
total na maturidade da idade e do espírito”. A isso que chamamos
comumente de amigo e de amizade não passam de ligações travadas ao
sabor das oportunidades e dos interesses e por meio das quais nossas
almas se entretêm. Pessoalmente, embora menos intensas, também as
considero de natureza salutar.
Mas, referindo ao tipo de amizade que alicerçou com La Boétie,
esclarece que nesse tipo, as almas se entrosam e se confundem em uma
única alma. Em ligações dessa natureza, diz ele, intervém uma
força inexplicável e fatal que não saberia definir: “Nós nos
procurávamos antes de nos termos visto, pelo que ouvíamos um acerca
do outro, e nascia em nós uma afeição fora de proporções (…),
no que vejo como que um decreto da Providência”.
Para o filósofo, também não se põem em dúvida as intenções do
verdadeiro amigo e que nenhuma das suas ações poderia nos ser
apresentada sem que, de imediato, percebêssemos o motivo: “Nossas
almas caminharam tão completamente unidas, tomadas uma por essa
afeição que penetra e lê no fundo de nós mesmos, que não somente
eu conhecia a sua [alma] como a minha, mas teria, nas questões de
meu interesse pessoal, mais confiança nele do que em mim mesmo”.
Nas amizades comuns, alerta Montaigne, é necessário segurar as
rédeas e caminhar com prudência; o nó da união não é de tal
solidez que se deva confiar dele. Já entre amigos de verdade, os
serviços e favores – elementos essenciais às outras amizades –
não entram em conta, porque as vontades dos verdadeiros amigos são
fundidas numa só.
Prossigamos com Michel de Montaigne, pois ainda precisamos ponderar,
entre outras particularidades, sobre as questões relativas aos bens
e ao dinheiro entre os verdadeiros amigos.
Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana da
Galleria Borghese, Roma
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