Não é de hoje que, atônita, a humanidade é surpreendida por moléstias
com mortandade em escalas aterrorizantes.
Mas, desde os tempos mais remotos, o que permanece igual e o que mudou
na forma com a qual lidamos com essas tragédias?
Democrática, a palavra PANDEMIA reúne todos (pan) + povos (demos).
Na antiguidade, quando algo de nefasto assolava uma comunidade,
buscava-se a redenção do “castigo divino” por meio da expiação (reparação) das
faltas através do clamor e dos sacrifícios aos deuses.
Um dos exemplos deste “modus vivendi/modus operandi” está na a
calamitosa situação de Tebas, trazida pelo mais “raiz” dos tragediógrafos, o
monumental Sófocles, em 427 a.C.
Sim, buscar inteligir e barganhar com a metafísica é coisa muito
antiga. E, paradoxalmente, atualíssima, como veremos adiante.
O povo, então, se empenhava em identificar e banir o miasma (mancha,
mácula), expulsando a provável causa daquilo – melhor dizendo, de quem – os
arruinava.
É desse contexto que surge a figura do bode expiatório, literalmente,
um clássico.
Avançando mais um pouco até a Idade Média (1347), a Peste Negra
(transmitida pelas pulgas dos ratos), também nominada Peste bubônica (as feridas
formavam bulbos na pele) impiedosamente dizimou um terço da população europeia.
Nesta, elegeu-se por bode expiatório, dentre outros, os judeus. Na
Pandemia que enfrentamos hoje, apressa-se em apontar os chineses e seus
suspeitáveis hábitos alimentares.
No entanto, uma vez que alimentação requereria um texto à parte e,
talvez, somente os sábios pitagóricos (vegetarianos) estivessem em posição de
objetar com propriedade, prossigamos.
Desde os primórdios, evidenciando nossa vulnerabilidade diante da
inevitável (a morte), o medo fortifica a Fé.
A fragilidade humana diante da Peste medieval, por significativo
período, solidificou (talvez seja apropriado dizer “glorificou”) a Igreja.
Mesmo que, no 5º ano de Peste, após obstinado apelo ao povo que confiassem em
Deus, grande parte do clero tenha desertado, causando imensa revolta na
população.
“Gatilho” elevado à máxima potência, a aterrorizante ameaça de morte
nos torna mesmo reféns do acaso, da “vontade de Deus”.
Isso é ainda mais dramático, sobretudo, quando estamos cônscios de que
nem mesmo uma portentosa e sólida posição social e/ou econômica, garante que a
foice nos distinga dos demais.
Evidente, este fato corrobora o desespero com o qual recorremos à
metafísica (Fé) em busca do alento que apazigue nossa alma e nos acene com
sobrevivência.
A igreja, atacada pela ineficácia diante da Peste, mas já
solidificada, passada a tormenta, prosseguiu e, detentora do calendário das
feiras (comércio), também impulsionou a economia, promoveu o bem-estar social e
patrocinou o Renascimento, tanto nas artes quanto nas ciências, essa última,
com tolhedoras ressalvas.
Foi também a Peste medieva que inspirou o poeta florentino Dante
Alighieri a escrever “A Divina Comédia: - "Ó, vós que entrais, abandonai
toda a esperança.", imprimindo em nossa memória as terríveis e indeléveis
imagens do inferno e dos demônios.
Mais adiante, ao final da primeira guerra mundial, fomos novamente
assombrados pela Gripe espanhola (1918-1919), que também ceifou mais 50 milhões
de vidas, dessa vez, em grande parte do mundo.
Novamente, testemunhamos um significativo avanço na higiene, medicina,
enfim, nas Ciências e uma pujante revolução industrial.
O momento atual indica que a dinâmica de nossa relação com as
misteriosas Pandemias não mudou muito.
Acompanhe: primeiro, tomados de assalto, incrédulos, ficamos
aturdidos.
Na sequência, a obstinada busca, eleição e perseguição do(s) bode(s)
expiatório(s), respaldados pela xenofobia, o fanatismo religioso e inúteis
divergências políticas.
Em meio a uma Pandemia, como em nenhuma outra circunstância, exceto na
guerra, o que dá no mesmo, pois Pandemia é uma guerra da humanidade contra um
inimigo comum (invisível), as caóticas sementes da ignorância encontram solo
fértil no ódio, o obscurantismo propaga-se com muito mais vigor em meio ao
desespero.
Concomitantemente às manifestações xenófobas, ao fervor religioso e
discordâncias políticas, advém o confinamento dos contaminados e o
distanciamento pessoal, a fim de se resguardar do contágio.
Em seguida, pois, a Peste é apressada, o enterro dos mortos, cujos
desfavorecidos, sem acesso sequer a saneamento básico, são sempre em maior
número e, por fim, o imediato e vertiginoso salto – quantitativo e qualitativo
– em termos de avanços das technai (Ciências), como já estamos testemunhando.
Longe de Tebas, da Peste bubônica e da Gripe espanhola, vivenciamos a
Pandemia do Covid-19 do alto do globalizado e, em grande parte imbecilizado
Século XXI, cuja população gira em torno de 7 bilhões de almas.
A diferença mais significativa no modo com o qual estamos lidando com
a atual Pandemia de Coronavírus talvez esteja no fato de que, extensão de
nossas mãos – escravizadas pelo que se passa no cérebro e o que sente no
“cuore” –, celular e internet promovem uma nova e desenfreada revolução à La
Gutenberg: a produção e propagação instantânea de todo tipo de informação.
Em meio a esse democrático dinamismo digital, com o caos a um clique,
a ignorância se alastra com vigor.
Constatamos DESDE o patético fenômeno da “gourmetização da peste”,
onde a turba chafurda com gosto na lama da vulgaridade, explicitando o que mais
define a multidão, a saber, ausência de pudor, ATÉ a proliferação de uma
inimaginável e portentosa rede de solidariedade, digna de nota e enaltecimento.
Obviamente, a bizarrice do "instagramworthy", o esdrúxulo
das “lives” ocas permite entrever o quanto tantos estão abandonados ao próprio
obscurantismo e de seus seguidores, que os aplaudem, endossando o grotesco,
alçando-os ícones no qual se espelhar.
Neste sentido, exceto pela proliferação da estupidez em progressão
geométrica, não há nada de novo sob o sol, pois a Peste que vivenciamos nos
traz de volta à tragédia, literalmente, uma vez que a tragédia desempenha a si
própria diante do público o que, como afirma Aristóteles, suscita terror e
piedade.
Felizmente, para toda essa avalanche, há antídoto! Simples, eficaz,
gratuito e ao alcance de todos nascidos de mulher: a liberdade e o poder de
escolher!
Pois, todavia, reitero, não é somente o trágico império do mau gosto o
que salta aos olhos nesta Pandemia pós-moderna; nem tudo é oportunismo e
“self-marketing”.
Embora produções cinematográficas recentes, como “O poço” e
“Parasitas” tenham nos permitido ponderar sobre o disparate nas condições de
vida de bilhões de pessoas neste mundo, é o invisível, distópico e “disruptivo”
Covid-19 que ousa rasgar de vez o véu da desumana e perversa desigualdade
social, que sufoca e mata sem sujar as mãos.
Mudanças. Decerto, haverá mudanças, como as que já ocorreram nas
Pandemias de outrora: na economia, em nossa relação com o consumo, na educação,
na relação entre patrões e empregados, nos próprios empregos, no surgimento de
novas profissões, nas Ciências, nas medicinas alternativas, e sobretudo na
inimaginável celeridade dos avanços tecnológicos, por exemplo.
Mudanças! Até porque, urge minimizar a portentosa demanda por dignidade
material e saúde psíquica de tantos seres humanos desafortunadamente
desamparados.
Mudanças inacreditáveis, extraordinárias, como as que já estão, de
fato, ocorrendo, vide a espetacular rede de solidariedade que têm viralizado e
contagiado a tantas boas almas neste mundo.
Não porque ser solidário “pega bem”, fazer doações seja “modinha”, mas
porque nossas semelhanças são mais significativas que nossas diferenças,
sobretudo na morte, que é o que nos define (mortais, lembra-se?).
Rasa ou profunda, morosa ou veloz, tímida ou mais audaciosa, o fato é
que a mudança oriunda da Pandemia do Covid-19 já começou: o “aplicativo”
compaixão foi instalado com sucesso.
É por essa APOTEOSE (rumo ao “theós”) que ansiamos desde a aurora dos
tempos. Não há mesmo nada de novo sob o céu.
Exceto, essa vontade contagiante de nos tornarmos mais humanos. E
então, não seremos só tragédia, mas um verdadeiro ÉPICO! \o/
Luciene Felix Lamy
Profa. de Filosofia e Mitologia Greco-romana