Fuga de Pompéia, por Giovanni Maria Benzoni (séc. XIX).
“A
primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou
seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada
em favor de um indivíduo”. Sigmund Freud
Temos
testemunhado a desesperadora situação de milhares de seres humanos
que se veem obrigados a abandonar seus lares e partir em busca da própria
sobrevivência.
Ponderar
sobre essa questão nos leva a considerar ao menos dois
pontos de vista, ou seja, tanto pela ótica dos que anseiam e clamam
por amparo, quanto sob o prisma daqueles que se sentem ameaçados
pela invasão dos “kxenós”
(estranho, estrangeiro, em grego).
Em virtude disso, é importante considerar dois princípios naturais (e antagônicos!) constitutivos do homem: a agressividade e a compaixão. Ponderemos sobre o primeiro deles, com o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939).
Em
sua obra “O mal-estar na civilização”, Freud esclarece que a
beleza
(ela não é uma só, como nos ensinou Platão, no Banquete, confira
artigo já publicado AQUI), a limpeza
e a ordem
ocupam posição especial entre as exigências da civilização.
Repudiamos
tudo o que é feio, sujo ou desordenado porque tememos essas
características em nós mesmos, daí a rejeição (mesmo que
inconsciente) com os quais não nos identificamos. E, se há algo que salta aos olhos nos imigrantes, mesmo se belos, é a carência de recursos mínimos para o básico em termos de limpeza e ordem.
Um
dos atributos da civilização é o empenho na regulamentação das
relações sociais e sabemos que, seja entre os cônjuges, os demais membros da
família, com os colegas de profissão, os amigos e para com os próprios
membros da comunidade, enfim, para todas as relações há leis, regras,
acordos (mesmo que tácitos) e códigos afins.
Freud
esclarece que não fosse assim, os relacionamentos ficariam sujeitos
à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que o
mais forte (ou mais rico, mais bonito, mais inteligente, etc),
decidiria a respeito dos demais, fazendo prevalecer seus próprios
interesses e impulsos instintivos.
No
entanto, a vida em comum só se torna possível quando reúne uma
maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece
unida contra todos os indivíduos isolados: “O poder dessa
comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição
ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’”, diz
ele.
A
substituição do poder de um
pelo poder de todos,
constitui o passo decisivo da civilização. Troca-se um pouco de
liberdade por outro tanto de segurança. Esse é o pacto.
Na
aceitação de submeter-se aos ditames assentados pela maioria jaz a
essência da civilização. Mas, enquanto que, por um lado, os
membros da comunidade restringem suas possibilidades de satisfação,
por outro, cada indivíduo desconhece ou se rebela a tais restrições:
“A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça,
ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será
violada em favor de um indivíduo”.
Subsequentemente,
salienta o autor, o curso seguinte no processo do desenvolvimento
cultural tende a ampliar-se, no sentido de tornar a lei não mais
somente expressão da vontade de uma comunidade (país, casta, camada
social, grupo ou ‘tribo’, como dizemos hoje em dia), mas de
tornar-se ela mesma também um oponente violento frente a outras
comunidades (outro país, outra casta, outra camada social, outro grupo ou "tribo").
É por considerarmos que o
desenvolvimento da civilização impõe restrições à liberdade e
que a justiça cumpra a exigência de que ninguém fuja ao
cumprimento de tais restrições, que o desejo de liberdade que se
faz sentir numa comunidade humana pode ser sua revolta contra alguma
outra injustiça existente numa outra comunidade.
Progredir
enquanto civilização é focar nosso impulso de liberdade (agora não
mais individual, mas enquanto comunidade) para o bem-estar e a
concórdia de todos os membros, nos empenhando na luta por justiça.
A
disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo (que
aflora da transformação de um instinto num impulso, denominada por
Freud de “afeição inibida em sua finalidade”) representa o
ponto mais alto que o homem pode alcançar.
Nesse sentido, o autor nos recorda que São Francisco de Assis talvez tenha sido quem mais longe foi na utilização desse amor para beneficiar um sentimento interno de felicidade.
Nesse sentido, o autor nos recorda que São Francisco de Assis talvez tenha sido quem mais longe foi na utilização desse amor para beneficiar um sentimento interno de felicidade.
Mas,
sobre esse “amor universal” Freud apresentará duas objeções.
Para ele, um amor que não discrimina é privado uma parte de seu
próprio valor, por fazer uma injustiça a seu objeto de “amor”
(quem ama todo mundo não ama ninguém, diz o jargão. Ou ainda: que valor teria um amor se é concedido indiscriminadamente?) e, sua segunda objeção está
na afirmação de que nem todos os homens são dignos de amor.
Uma
das exigências da sociedade civilizada, diz ele, está no imperativo
ideal que o cristianismo apresenta como senso sua reivindicação mais
gloriosa, a saber: “Amar o próximo como a si próprio”.
Essa
exigência, prossegue, não deixa de causar certa surpresa e até
perplexidade: “Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos
trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso
pode ser possível?”.
Sendo
nosso amor, algo valioso, devemos refletir sobre quem o merece. A
máxima de que devemos “Amar o próximo como a si próprio” nos
impõe deveres que para cumpri-los devemos estar preparados e
dispostos a realizar sacrifícios: “Se amo uma pessoa, ela tem de
merecer meu amor de alguma maneira. Ela merecerá meu amor, se for de
tal modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa
amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita do
que eu, que eu possa amar meu ideal de meu próprio eu”.
No
entanto, pondera, se essa pessoa for um estranho e não nos atrair
por seus valores e virtudes será muito difícil amá-la.
Quando
amamos alguém estamos valorizando essa pessoa, num sinal claro e
nítido de preferência. É uma injustiça para com os quais amamos
colocar um estranho no mesmo patamar de importância.
Se devo amar meu semelhante
com aquele amor universal que devo a todo ser vivente, como também
amo os animais, por exemplo, tratar-se-á de uma pequena parte. “Qual
é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu
cumprimento não pode ser recomendado como razoável?”, indaga
Freud.
E relata outras dificuldades:
“Não meramente esse estranho é, em geral, indigno de meu amor;
honestamente, tenho de confessar que ele possui mais direito a minha
hostilidade e, até mesmo, a meu ódio. Não parece apresentar o mais
leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima consideração
para comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não
hesitará em me prejudicar (…) não se importará em escarnecer de
mim, em me insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu
poder, e, quanto mais seguro se sentir e mais desamparado eu for,
mais, com certeza, posso esperar que se comporte dessa maneira para
comigo.”.
Recebendo
desse estranho, demonstrações de tolerância e respeito, Freud diz
que estaria pronto a tratá-lo da mesma forma, com toda consideração.
Por isso, diz que se o imponente mandamento dissesse “Ama a teu
próximo como este te ama”, ele não teria objeções.
Ele traz à luz um outro mandamento que confessa lhe parecer ainda mais
incompreensível: “Ama os teus inimigos”. E brinca: “Acho que
agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: 'É precisamente
porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é
teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo'. Compreendo então
que se trata de um caso semelhante ao do Credo
quia
absurdum”
(creio porque é absurdo).
É
provável, afirma, que seu semelhante aja da mesma forma que ele,
rejeitando a prescrição de que o ame como a si mesmo, pelas mesmas
razões.
O estudioso ressalta que digno
de nota é que o comportamento dos seres humanos apresenta diferenças
que a ética classifica como sendo “boas” ou “más”, mas ao
seguirmos o preceito acima citado, obedecendo às elevadas exigências
éticas, incentivaremos o ser mau, acarretando prejuízos aos
objetivos da civilização.
As
pessoas não estão dispostas a enxergar que não somos pacíficos e
só nos defendemos se atacados, mas sim, detemos uma poderosa cota de
agressividade. Em seus estudos Freud comprova isso.
Nosso
próximo, reitera, não é apenas um ajudante potencial ou um objeto
sexual, mas também alguém que nos tenta a satisfazer sobre ele a
nossa agressividade, a explorar seu trabalho sem remuneração justa,
utilizá-lo sexualmente, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo,
causar-lhe sofrimento, torturá-lo e até mesmo matá-lo: “Homo
homini lupus” (o homem é o lobo do homem).
Prossigamos em nossas ponderações,
amigos, pois em questões nevrálgicas que dizem respeito à
humanidade, não há como tirar coelhos da cartola. Mas, se
pensarmos, talvez surja uma pomba.
Confira no vídeo abaixo Costanza Pascolato & Marilu Beer mencionando as dificuldades devido à imigração de seus pais para o Brasil (vindos da Itália e da Argentina, respectivamente).
Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana da
Galleria Borghese, Roma
Confira vídeos no youtube: luciene felix lamy
Um comentário:
Excelente resenha, traçou um perfil muito real do problema.
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