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1 de fev. de 2012

AMOR CORTÊS - Pedagogia do Amor Nobre

Consagração de Lancelot, cavaleiro da Corte do Rei Arthur, por sua Rainha Guinevere
    
 "Yo soy yo y mi circunstancia y si no la salvo a ella no me salvo yo".
Ortega y Gasset (Filósofo espanhol)


É com preocupante desgosto que constatamos o desserviço que a produção cultural contemporânea presta a toda nossa sociedade. Na atual Idade Mídia, seja através da web (sites, blogs, youtube, twitter, tumblr, redes sociais, ‘correntes’ por e-mails, etc.,) ou dos veículos midiáticos mais clássicos (TV, cinema, rádio, jornais, revistas e CD’s), nunca tantos puderam produzir tanto e, pior, compartilhar tanto lixo.

Sujeito moral, o homem intenta refrear os ímpetos instintivos que comunga com os demais animais não racionais e está cônscio da relevância da educação nesse processo na formação de seus valores e, consequentemente, de seu caráter.

Segundo o historiador francês Georges Duby, renomado estudioso da sociedade feudal: “Como todos os organismos vivos, as sociedades humanas são o lugar de uma pulsão fundamental que as incita a perpetuar sua existência, a se reproduzirem no quadro de estruturas estáveis.”. 

O estudioso afirma ainda que a permanência dessas estruturas é, nas sociedades humanas, instituída conjuntamente pela natureza e pela cultura.

Envoltórios jurídicos e litúrgicos sempre se empenharam em impor interditos a fim de normatizar as pulsões que culminam na proliferação de práticas desordenadas da copulatio: “No centro desses mecanismos de regulação, cuja função social é primordial, tem o seu lugar, com efeito, o casamento.” Sem dúvida, a aliança de casamento é o mais importante ato social.

Se a ‘natureza’ por sua própria índole já opera de forma pervertida, sem educação moral a estrutura social basilar estatela-se no caos. Sendo assim, não surpreende que em nossa sociedade, sobretudo na classe cultural inferior – incontestavelmente predominante – emirja, instantaneamente, a cega adesão e o culto à libertinagem.

Sobre o conceito de “libertino”, Fernando Savater explica que A moralidade sexual estava ligada a essa estrutura da família e da propriedade, a tal ponto que, entre os romanos, por exemplo, os únicos que estavam submetidos a estritos tabus sexuais eram os 'pater familias' ou as matronas, aqueles que possuíam coisas, ao passo que os escravos não tinham moralidade sexual, ou seja, ninguém os criticava por serem promíscuos ou incestuosos.”. 

Esclarece ainda que “Quando alguns dos escravos eram libertados por seus senhores passavam a se chamar libertos. Ao entrarem no mundo das pessoas livres, eles conservavam os costumes da escravidão, condutas mais abertas e menos escrupulosas que as das pessoas com famílias estabelecidas. Daí vem a palavra libertinagem, ou seja, o comportamento desses libertos (...)” .

A educação moral legada por filósofos, literatos, juristas e eclesiásticos contribuiu significativamente para que os menos favorecidos, aos poucos, normatizassem seus costumes.

Na antiga Grécia, por exemplo, semelhante às tragédias, temos nas fábulas do inspirador de La Fontaine – Esopo (séc. VI a.C.) – toda uma lúdica Paidéia (em sua peculiar pedagogia, ele dava voz aos animais) de cunho moralizante. Mítico, Esopo foi enaltecido por Platão, Aristófanes, Heródoto e muitos outros filósofos.

Na literatura, mulheres em posição e ações de destaque foram então, exceção à regra. Inferiorizada em relação ao homem, desde o advento da supremacia do patriarcado sobre o matriarcado, somente pontualmente a História registrou as façanhas de grandes estadistas, intelectuais ou guerreiras indômitas como Cleópatra, Aspásia de Alexandria e Joana D’Arc, respectivamente.

No entanto, por volta do Século XII, surge na aristocrática Europa feudal uma pedagogia literária que põe em relevo o papel da Dama (dominas) no universo do poder.        

Trata-se dos romances de cavalaria que enalteciam o “Amor cortês” (l’amour courtois), o fino amor, o amor gentil e delicado: “um gênero de literatura de sonho, de evasão, de compensação (...) um modelo de relação e de conjunção sentimental e corporal entre um homem e uma mulher (...)”, o Romance.

Como o amor de Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda, o amor cortês prima pela distinção dos amantes e um dos mais famosos é o clássico “Le Chevalier à la charrette”, de Chrétien de Troyes, que narra as aventuras de Sir Lancelot, fiel cavaleiro da corte o Rei Arthur e da Rainha Guinevere (confiram o resumo da Obra que postarei nos próximos dias, aqui em nosso Blog).

À literatura do amor virtuoso, cortês, coube o papel fundamental de educar, de civilizar os afoitos jovens cavaleiros. Estamos na Idade Média, de modo que, ou se é membro do clero, da nobreza ou da cavalaria. Os demais, por residirem nas Vilas, são denominados vilões.

Disciplinar os instintos, conter a volúpia, dosar o ímpeto, represar a lascívia, enfim, platonizar o amor. Para tanto, bastava que o jovem se encantasse por uma mulher nobre, casada e, fiel como a Desdêmona de Otelo, retratada posteriormente por Shakespeare.

Tal ousadia trazia ao jogo do amor cortês um componente altamente perigoso, mas também irrecusável a um destemido cavaleiro: pôr a vida em risco pelo amor de uma mulher resolutamente casta, inacessível.

O adultério feminino era a pior das subversões e uma mulher honrada, jamais, em hipótese alguma poderia ceder aos caprichos do cavaleiro que lhe fizesse a corte: “(...) a justa [luta] amorosa opõe dois parceiros desiguais, um dos quais, por natureza, está destinado cair (...). Pelas leis naturais da sexualidade. Pois, trata-se bem disso, que o véu das sublimações, todas as transferências imaginárias do corpo para o coração não chegam a dissimular.”. Mesmo que, insistentemente, profira com veemência não desejar possuí-la, mas somente merecê-la, a glória (entenda-se prêmio) do vassalo é apoderar-se do tão sonhado corpo da amada.

Impensável em nossos dias de “Amor líquido” (como conceituou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, vide artigo já publicado neste Blog), de imediatez e facilidades vãs, viver “um amor ao mesmo tempo ilícito e moralmente elevado, passional e autodisciplinado, humilhante e exaltante, humano e transcendente”, significava exercitar-se e treinar extenuadamente por semanas, às vezes, meses, empenhando-se em vencer uma árdua batalha ou duelo, para então, vitorioso em combate, ser agraciado com um olhar mais detido, um aceno, um menear de cabeça ou tímido sorriso. Toda dádiva exige uma contra-dádiva, nisso consiste a vassalagem. Uma verdadeira Dama jamais destrata um cavaleiro.

Arquitetar a oportunidade – por mais remota que fosse – de dedicar-lhe um triunfo, de se oferecer um poema, uma rosa ou jóia rara, preciosa; esperar pela possibilidade de manifestar, respeitosamente, o quão sincero e sublime era esse sentimento. Eis a razão do viver de um nobre cavaleiro.

Segundo Jardel D. Cavalcanti: “O amor cortês se fincava na tríade prisão da qual não se pode fugir ao se amar: sujeito/objeto/falta”. Some-se a isso que também implica valores caros à nobreza, tais como altivez, honra, fidelidade, moderação, controle: “Na sua extrema ‘delicadeza’, o amor não podia ser o do clérigo, nem o do ‘plebeu’, isto é, do homem de dinheiro. Ele caracterizava, entre as pessoas da corte, o cavaleiro.”, tamanho refinamento é de difícil assimilação entre despudorados e levianos libertinos.

Da literatura do amor cortês legada pelos medievos (que muitos denominam rasa e erroneamente de ‘Idade das Trevas’) temos, portanto, uma proposta pedagógica que, – "Cherchez la femme!", como diria Alexandre Dumas – pela retidão das Damas (Mestres) educava-se chevaliers: “Graças à revolução amorosa, os homens refinaram-se, poliram-se, tornaram-se um pouco mais civilizados, corteses, aprendendo a cortejar a dama até onde ela o permitisse.” Sublime, balizado por consagrar-se ao respeito, ao pudor, ideal delicado, nunca o Amor resplandeceu tanto. Terno. E Eterno.


 









2 de jan. de 2012

DESTINO, LIBERDADE E ÉTICA


"O confronto entre a Razão e o Destino é prova decisiva da reflexão filosófica"
Henrique Claudio de Lima Vaz


Provavelmente, em algum momento de extrema angústia, perplexo, você ergueu os olhos aos céus e, munido da mais aguda e desperta ratio, empreendeu uma luta hercúlea, buscando explicação lógica para uma pequena ou portentosa tragédia pessoal.

Os tragediógrafos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, versaram sobre as atemporais mazelas da vida. Esses premiados literatos registraram de forma magistral o inexorável peso do Destino e dos caprichos Fortuna (Tyché) sobre o Homem.

Do alinhavar da predestinação implacável à paulatina descoberta do Homem enquanto portador de uma alma (psyche) em relação com os demais, a tragédia grega assinala a aurora do Ethos – hábito, conduta – que culmina em nosso ‘habitat’.

Será então, embalada por esse avanço (ainda que tímido) na liberdade de agir que emergirá uma nova conduta, um novo Ethos.

Como reitera o filósofo Henrique Claudio de Lima Vaz, “a descoberta da alma assinala a emergência de uma nova figura do indivíduo no centro da reflexão ética.”. Ao presunçoso, mas desamparado filho da physis (natureza), logra êxito o lógos verdadeiro.

Reféns dos tais “desígnios” (Destino/Fortuna), tornamo-nos também, filhos da virtude e da razão.

Em contraponto às inescrutáveis razões da physis, onde o indivíduo sofístico erige e circunscreve o palco do Ethos movido pela cega vontade de poder (subjugado pela hybris, a desmedida e, portanto refém do Destino), desponta o herói (ou heroína, como Antígona) e, na sequência, emerge o ponderado indivíduo socrático, cujo Ethos é circunscrito no agir virtuoso, na ação justa, portanto, razoável.

Lima Vaz aponta que na ação razoável, “que é igualmente a práxis justa e virtuosa, deverão conciliar-se desejo, razão e liberdade.” Essa possibilidade fora negada ao herói trágico, pois, encapsulado por seus desejos e paixões, o não deliberar restringia seu potencial de liberdade.

Os “nós” desse entrelaçamento são didaticamente expressos pelo filósofo Mario Sérgio Cortella: “Ética é o conjunto de princípios e valores que usamos para decidir as três grandes questões da vida: quero [desejo]? devo [razão]? posso [liberdade]?”.

Cortella então prossegue, chamando a atenção para o fato de que: “Tem coisas que eu quero, mas não devo; que eu devo, mas não posso e que posso, mas não quero (...). Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é o que você pode e é o que você deve.” Seria perfeito!

E, se mesmo agindo somente depois de prudente deliberação, de forma sensata, segundo a excelência do Bem, a “realidade enigmática e hostil do mundo e da vida”, o Destino, se opor à ação virtuosa, revelando-se cego e fatal? Noutras palavras, “como ousar prolongar o caminho da Ética como ciência do ethos no interior da obscuridade impenetrável que envolve a temerosa montanha do Destino?”, indaga Lima Vaz.

Essa interrogação, diz ele, encontrará no mundo antigo a resposta da mais impressionante grandeza e da mais desoladora resignação: “quando o Estoicismo tiver elevado a razão do Sábio à própria altura do Destino, então transfigurado em pronoia, providência racional.”.

O que a reflexão ética platônico-aristotélica busca estabelecer é o melhor ajuste possível entre lógos e Ethos.

Destino e Fortuna acabam obscurecendo esse ajuste, pois são duas faces incompreensíveis da realidade: “de um lado, a rígida cadeia da necessidade [Destino] que parece ligar seres e acontecimentos nos vínculos de uma infringível ordem universal; de outro, a Fortuna volúvel que distribui de maneira imprevisível a sorte de cada um.”.

Quando o imponderável se apresenta, mesmo diante da conduta sensata do justo e, surpresos indagamos: “POR QUÊ?” é que “a primeira face [Destino] ergue-se enigmática”, diz Lima Vaz.

Já a segunda face (Fortuna), também por não obedecer a uma lógica alcançável “ameaça com a sem-razão de uma total contingência as razões do agir segundo a virtude”.

Como garantir àqueles que agem virtuosamente o justo direito a uma felicidade “que se sobreponha à inelutabilidade do Destino e à inconstância da Fortuna?”.

As primevas reflexões sobre Destino e Fortuna nasceram no mito arcaico ANTES “de encontrar no discurso filosófico o seu desaguadouro natural”. As tragédias explicitam o confronto “entre o pungente sentimento de impotência em face do Destino e da Fortuna e a inquebrantável energia e a força criadora com as quais o homem grego enfrenta os desafios da ação (práxis)”. Desde então, o homem segue “plasmando a sua existência e organizando o seu mundo segundo as normas da razão (lógos) e o alvo da excelência (areté)”.

Quando a Paidéia (pedagogia) das tragédias tem por alvo a excelência (areté), diz Werner Jaeger, “mostra que a experiência do Destino e da Fortuna, longe de alimentar um resignado fatalismo na alma grega, estimulou todas as suas energias para responder, com a criação da Ética e da Política, à ameaça do niilismo moral (...)”.

Nas tragédias áticas trava-se o embate entre Razão X Destino/Fortuna. Ou, como poeticamente se expressa Lima Vaz: “o entrecruzamento da linha horizontal da vida traçada pelo precário e trabalhoso saber humano e a linha vertical do majestoso desígnio divino que desce das alturas de uma inalcançável transcendência”. Eis a essência do mistério que envolve nossas angústias.

A famosa inscrição no Templo de Apolo, em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”, diz ele, “conduzirá ao recesso mais íntimo do indivíduo, que a tradição consagrará com o nome de ‘consciência moral’”.

Mas, quais são os remédios capazes de curar dos males da existência quando, mesmo sendo razoáveis, virtuosos e dignos, surpreendidos pelo Destino (Moira), deparamo-nos com assombrosos obstáculos, aparentemente instransponíveis?

Lima Vaz afirma que essas interrogações são decisivas e que acompanham a formação do pensamento ético e em torno das quais se adensa, pouco a pouco, a ideia de uma ‘vida interior’ do virtuoso, da alma (psyche) no sentido socrático e, será no âmbito dessas ideias que o Destino e a Fortuna serão finalmente compreendidos pelas razões de uma “Razão superior”.

Para o filósofo, é possível “descobrir no homem aquela parte de seu ser – a melhor – pela qual ele é capaz de libertar-se da cadeia dos males e elevar-se à verdadeira eudaimonia [felicidade] (...) pela convicção de que a práxis obediente à norma do lógos torna-se capaz de vencer os males advindos do Destino”.

Consciência moral – co-autoria, responsabilidade dos homens, – não somente capricho dos deuses embasa a tal “consciência tranqüila, limpa”. Assim, alcançamos o que ele chama de “uma nova e superior forma de felicidade que tenha a sua sede na interioridade racional da psyche [Alma] e seu fundamento no lógos verdadeiro”.

Será na estrutura lógica do agir humano que a liberdade – contraprova do Destino – terá assegurado seu lugar: À luz do Sol do Bem (...) a sombra do Destino recua (...).”, e isso, repito, não é de pouca monta.

Destino e Fortuna são instáveis fluxos dispensadores de penas e alegrias, de onde é possível emergir a grandeza e nobreza inata do homem, capaz de aprender com o sofrimento. PORQUE faz parte.

1 de nov. de 2011

NIETZSCHE - Culpa, Castigo e... Festa?

"Conhece-te a ti mesmo" - "Nada em excesso"
"Não prometa o que não sabe se poderá cumprir"

Das três mensagens no frontispício do Oráculo do deus da saúde e da harmonia, Apolo, foram encontrados somente fragmentos dessa última.

Dentre os temas tão caros à Psicologia, ao Direito e à História Contemporânea, por exemplo, na Segunda Dissertação de sua obra “A genealogia da moral”, o filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) esmiuçará a origem da culpa e do castigo culminando numa festa.

O homem é um ser que promete e, pelo porte da promessa que julga estar apto em poder cumprir, se afirma, equipara e entrelaça seu ego à magnitude de sua capacidade em honrar o compromisso.

Mas também é um ser que se esquece. Justamente por ser dotado dessa capacidade (de esquecer) é que esse mesmo “esquecimento” se transmutará num poder ativo, numa força que educa e disciplina: a memória.

Segundo o autor, devemos procurar aqui a origem da responsabilidade. Prometer, se esquecer e ser assaltado pela memória leva-nos a ponderar: “Esta tarefa de educar e disciplinar um animal que possa fazer promessa pressupõe outra tarefa: a de fazer o homem determinado, uniforme, regular, e, por conseguinte, calculador.” 

Essa proeza coube à moral, num constante e longínquo trabalho, desde a aurora, até o presente de nossa existência: “unicamente, pela moralização dos costumes e pela camisa de força social, chegou o homem a ser realmente calculador.” Assim, pressentimos, prevemos, governamos, tornamo-nos senhores, responsáveis por nossos atos. Observe que essa responsabilidade culminará numa moralidade.

Independente, livre e soberano, o homem que pode prometer é um indivíduo de vontade própria: “possui em si próprio a consciência da liberdade e do poder, o sentimento de ter chegado à perfeição humana.”, aponta.

Por julgarmo-nos merecedores de crédito, não reconhecemos nem nos deixamos limitar pelas coisas que não podemos prometer, noutras palavras, não nos atemos ao imponderável e, seguimos ávidos: “(...) quanta confiança, temor e respeito inspirou o ‘merece (...)”. Julgamo-nos superiores aos demais, os de vontade menos potente.

Assim, o homem ‘livre’, “o senhor de uma vontade vasta e indomável, encontra nessa posse a sua escala de valores; fundado em si próprio, para julgar os outros, respeita ou despreza, e assim como venera os seus semelhantes, os fortes que [igualmente como ele] podem prometer (...)”.

Mas há os que são fortes e prometem como soberanos, somente depois de deliberar, refletir: “(...) que dão a sua palavra como tábua de mármore, que se sentem capaz de cumpri-la, a despeito de tudo, ainda a despeito do ‘destino’ (...)” e há também os fúteis, que prometem levianamente, sem serem verdadeiramente ‘donos’, pois incapazes de cumprir suas promessas.

O filósofo afirma que estar cônscio dessa liberdade rara, “e poder sobre si e o destino chegando às profundidades maiores de seu ser passou ao estado de instinto dominante (...)”. A esse instinto dominante, de: “Responder por si mesmo e responder com orgulho, dizer sim a si mesmo.”, Nietzsche identifica e nomeia ‘consciência’.

A primeva técnica de imprimir memória – mnemotécnica – é terrivelmente eficaz: “Imprime-se algo por meio de fogo para que fique na memória somente o que sempre dói.” É a memória, sobretudo quando choca, machuca, causando perda, a dor, que nos faz cumprir a promessa de não brincar com fogo, não flanar em ruas escuras, enfim, de estar atento aos perigos.

Onde há solenidade, gravidade, mistério e cores sombrias, diz ele, fica um vestígio de espanto, que noutro tempo presidia às transações, aos contratos, às promessas: “o passado, o longínquo, obscuro e cruel passado, ferve em nós quando nos pomos ‘graves’. Noutro tempo, quando o homem julgava necessário criar uma memória, uma recordação, não era sem suplício, sem martírios e sacrifícios cruentos; os mais espantosos holocaustos e os compromissos mais horríveis (como o sacrifício do primogênito), as mutilações mais repugnantes (como a castração), os rituais mais cruéis de todos os cultos religiosos (porque todas as religiões foram em última análise sistemas de crueldade), tudo isso tem a sua origem naquele instinto que descobriu na dor o auxílio mais poderoso da mnemotécnica.”

Certas ideias devem fixar-se indeléveis na memória, diz Nietzsche, a fim de hipnotizar para torná-las inesquecíveis: “o rigor das leis penais permite apreciar especialmente as dificuldades que ela [a memória] experimentou antes de se fazer senhora do esquecimento e para manter presentes na memória destes escravos das paixões e dos desejos algumas exigências primitivas da vida social.” 

Em Nietzsche, o conceito essencial da “culpa” tem sua origem na ideia material de “dívida”. Culpa é dívida; seja finita ou infinita – eterna, – como a que alicerça os dogmas judaico-cristãos.

Já o castigo, “enquanto represália, se desenvolveu independentemente de toda a hipótese de livre-arbítrio e de obrigação”. Somente depois é que o animal homem se humanizou e “começou a distinguir entre ideias muito mais primitivas, por exemplo, ‘de propósito’, ‘por descuido’, ‘por acaso’, ‘com discernimento’, e os seus contrários para pô-los em relação com a severidade do castigo.”

Sendo assim, se hoje temos a ideia de que “o criminoso merece o castigo porque teria podido proceder de outro modo” é devido a uma forma muito tardia e requintada do juízo e da indução, diz o alemão.

Em tempos cegos d‘Outrora, o castigo fora empregado com fúria: “(...) não castigavam o malfeitor porque o julgasse responsável pelo seu ato; nem sequer se admitia que só o culpado devesse ser castigado (...) mas esta cólera é mantida em certos limites e modificada no sentido de que todo o dano encontre de algum modo o seu equivalente, sendo susceptível de compensar-se ao menos por uma dor que sofra o autor do prejuízo.” O ultraje que o dano excita exige reparação.

A ideia de que prejuízo e dor são equivalentes, diz Nietzsche, é tirada das relações contratuais entre credores e devedores “que são tão antigas quanto os processos que, por sua vez, nos levam às formas primitivas da compra e venda, do câmbio, comércio e relações.”

Prometer instaura a memória, compromete: “O devedor, para inspirar confiança na sua promessa de pagamento, para dar uma garantia de sua seriedade, para gravar na sua própria consciência a necessidade de pagamento sob a forma de dever, da obrigação, compromete-se, em virtude de um contrato com o credor, a indenizá-lo, em caso de insolvência, com alguma coisa que ‘possui’ [seu corpo, sua mulher, filhos, sua liberdade, a vida e até seu direito ao sossego e à paz, no túmulo] (...).”

Nesta nefasta forma de compensação (ao invés de dinheiro, bens, etc.), “concedia-se ao credor certa satisfação e gozo à maneira de compensação e pagamento, a satisfação de exercer impunemente o seu poderio com respeito a um ser reduzido à impotência, o deleite ‘de faire le mal pour le plaisir de le faire’, a alegria de tiranizar, e este gozo é tanto mais intenso quanto mais baixa é na escala social a classe do credor, quanto mais humilde é a sua condição, porque então é-lhe mais saboroso o bocado.”

Desconfortável aos espíritos mais modernos, sensíveis, o alemão perturbador constata que “Pelo castigo do devedor, o credor participa do direito de senhor: finalmente chegou a sua vez de saborear uma sensação enobrecedora, de desprezar e maltratar o que esteja por baixo dele (...). A compensação consiste, pois, na promessa e no direito de ser cruel.”

Para Nietzsche, a origem dos conceitos morais de ‘culpa’, ‘consciência’, ‘dever’, ‘santidade do dever’, ‘dor’, encontram-se nessa esfera (da crueldade). A dor compensava as dívidas simplesmente porque “o fazer sofrer causava um prazer imenso à parte prejudicada, que recebia, em compensação além do desprazer do prejuízo, o extraordinário gozo de fazer cobrar – isto era uma verdadeira festa!”.

Por nossa tendência a assumirmo-nos como credores, parece mesmo ser de indisfarçável deleite, cobrar dívidas. É comum testemunharmos quem se disponha a fazê-lo por àqueles que se recusam.

Quanto à ideia de vingança, indagando: “Como é que o fazer sofrer pode ser uma satisfação?”, explica que essa é uma verdade repugnante, sobretudo aos animais domesticados (nós): “(...) até que ponto a crueldade era o gozo favorito da humanidade primitiva e entrava como ingrediente em quase todos os seus prazeres, e, por outro lado, quão inocente e cândida parecia esta necessidade de crueldade, esta ‘maldade desinteressada’.”



Revelando algo assaz abjeto, Nietzsche denuncia: “Ver sofrer, alegra; fazer sofrer alegra mais ainda.” E reconhece que há nisto uma frase dura, uma antiga verdade ‘humana, demasiado humana’.

O funesto espetáculo público, que foi a morte do ditador líbio Muamar Gaddafi corrobora-o: “Sem crueldade não há gozo, eis o que nos ensina a mais antiga e remota história do homem; o castigo é também uma festa.” Agora, de dimensões globais.

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Eis que a Sabedoria reina, mas não governa, por isso, quem pensa (no todo) precisa voltar para a caverna, alertar aos amigos. Nós vamos achar que estais louco, mas sabes que cegos estamos nós, prisioneiros acorrentados à escuridão da caverna.

Abordo "O mito da caverna", de Platão - Livro VII da República.

Eis o télos (do grego: propósito, objetivo) da Filosofia e do filósofo. Agir na cidade. Ação política. Phrônesis na Pólis.

Curso de Mitologia Grega

Curso de Mitologia Grega
As exposições mitológicas explicitam arquétipos (do grego, arché + typein = princípio que serve de modelo) atemporais e universais.

Desse modo, ao antropomorficizarem os deuses, ou seja, dar-lhes características genuinamente humanas, os antigos revelaram os princípios (arché) de sentimentos e conflitos que são inerentes a todo e qualquer mortal.

A necessidade da ordem (kósmos), da harmonia, da temperança (sophrosyne) em contraponto ao caos, à desmedida (hýbris) ou, numa linguagem nietzschiana, o apolíneo versus o dionisíaco, constitui a base de toda antiga pedagogia (Paidéia) tão cara à aristocracia grega (arístois, os melhores, os bem-nascidos posto que "educados").

Com os exponenciais poetas (aedos) Homero (Ilíada e Odisséia), Hesíodo (A Teogonia e O trabalho e os dias), além dos pioneiros tragediógrafos Sófocles e Ésquilo, dispomos de relatos que versam sobre a justiça, o amor, o trabalho, a vaidade, o ódio e a vingança, por exemplo.

O simples fato de conhecermos e atentarmos para as potências (dýnamis) envolvidas na fomentação desses sentimentos, torna-nos mais aptos a deliberar e poder tomar a decisão mais sensata (virtude da prudencia aristotélica) a fim de conduzir nossas vidas, tanto em nossos relacionamentos pessoais como indivíduos, quanto profissionais e sociais, coletivos.

AGIMOS COM MUITO MAIS PRUDÊNCIA E SABEDORIA.

E era justamente isso que os sábios buscavam ensinar, a harmonia para que os seres humanos pudessem se orientar em suas escolhas no mundo, visando atingir a ordem presente nos ideais platônicos de Beleza, Bondade e Justiça.

Estou certa de que a disseminação de conhecimentos tão construtivos contribuirá para a felicidade (eudaimonia) dos amigos, leitores e ouvintes.

Não há dúvida quanto a responsabilidade do Estado, das empresas, de seus dirigentes, bem como da mídia e de cada um de nós, no papel educativo de nosso semelhante.

Ao investir em educação, aprimoramos nossa cultura, contribuimos significativamente para que nossa sociedade se torne mais justa, bondosa e bela. Numa palavra: MAIS HUMANA.

Bem-vindos ao Olimpo amigos!

Escolha: Senhor ou Escravo das Vontades.

A Justiça na Grécia Antiga

A Justiça na Grécia Antiga

Transição do matriarcado para o patriarcado

A Justiça nos primórdios do pensamento ocidental - Grécia Antiga (Arcaica, Clássica e Helenística).

Nessa imagem de Bouguereau, Orestes (Membro da amaldiçoada Família dos Atridas: Tântalo, Pélops, Agamêmnon, Menelau, Clitemnestra, Ifigênia, Helena etc) é perseguido pelas Erínias: Vingança que nasce do sangue dos órgãos genitais de Ouranós (Céu) ceifado por Chronos (o Tempo) a pedido de Gaia (a Terra).

O crime de matricídio será julgado no Areópago de Ares, presidido pela deusa da Sabedoria e Justiça, Palas Athena. Saiba mais sobre o famoso "voto de Minerva": Transição do Matriarcado para o Patriarcado. Acesse clicando AQUI.

Versa sobre as origens de Thêmis (A Justiça Divina), Diké (A Justiça dos Homens), Zeus (Ordenador do Cosmos), Métis (Deusa da presciência), Palas Athena (Deusa da Sabedoria e Justiça), Niké (Vitória), Erínias (Vingança), Éris (Discórdia) e outras divindades ligadas a JUSTIÇA.

A ARETÉ (excelência) do Homem

se completa como Zoologikon e Zoopolitikon: desenvolver pensamento e capacidade de viver em conjunto. (Aristóteles)

Busque sempre a excelência!

Busque sempre a excelência!

TER, vale + que o SER, humano?

As coisas não possuem valor em si; somos nós que, através do nôus, valoramos.

Nôus: poder de intelecção que está na Alma, segundo Platão, após a diânóia, é a instância que se instaura da deliberação e, conforme valores, escolhe. É o reduto da liberdade humana onde um outro "logistikón" se manifesta. O Amor, Eros, esse "daimon mediatore", entre o Divino (Imortal) e o Humano (Mortal) pode e faz a diferença.

Ser "sem nôus", ser "sem amor" (bom daimon) é ser "sem noção".

A Sábia Mestre: Rachel Gazolla

A Sábia Mestre: Rachel Gazolla

O Sábio Mestre: Antonio Medina Rodrigues (1940-2013)

O Sábio Mestre: Antonio Medina Rodrigues (1940-2013)

Você se sentiu ofendido...

irritado (em seu "phrenas", como diria Homero) ou chocado com alguma imagem desse Blog? Me escreva para que eu possa substituí-la. e-mail: mitologia@esdc.com.br