“Ó vós que não
sabeis governar senão arrebatando aos cidadãos a subsistência e as
comodidades da vida! – confessai que sois indignos e incapazes de
dirigir homens livres! (…) Corrigi vossa ignorância, vosso orgulho
e vossa preguiça (...)”. Thomas More
Filho de juiz, o renascentista inglês Thomas More (Morus ou ainda
Tomás Moro - 1478-1535), catedrático de Direito, foi diplomata,
advogado, escritor e chanceler do rei Henrique VIII. Legou muitos
escritos e, a “Utopia” (de 1516) é sua obra mais famosa.
O humanista traz a alegoria de uma ilha imaginária denominada
“Utopia”, onde idealiza um Estado justo. Na primeira parte do
livro, da qual pinçamos os trechos abaixo, constatamos o clamor que
o levou a redigir esse clássico. Vamos às atualíssimas palavras de
More.
Após uma viagem em missão diplomática que envolvia querelas entre
Henrique VIII e o então imperador Carlos V, More aproveitou o
término de suas tarefas para ir à Antuérpia, onde o amigo Pedro
Gil apresentou-o ao extraordinário erudito português Rafael
Hitlodeu, que navegou com Américo Vespúcio.
Será através de Rafael que More nos trará suas ideias políticas.
Sobre os próximos daqueles que detém o poder, o autor é
contundente: “esses vis parasitas só tem uma finalidade: ganhar,
por uma baixa e criminosa lisonja, a proteção do primeiro
favorito.”
O início dessa primeira parte versa sobre a pena de morte, que não
inibe os ladrões: “(…) não seria melhor garantir a existência
a todos os membros da sociedade, a fim de que ninguém se visse na
necessidade de roubar, primeiro, e de morrer, depois?”.
Insiste que a principal causa da miséria pública reside no número
excessivo de ociosos e gananciosos que se nutrem do suor e do
trabalho dos outros e que ainda arrastam consigo uma turba de
incapazes de ganhar a vida.
Já o pobre, sofre e é abandonado nas horas de necessidade. Na busca
por um emprego, gastam sola de sapatos e, se doentes e mal vestidos,
veem ser desprezados os seus serviços, passando a mendigar ou
roubar.
Ainda sobre o gérmen da desigualdade, atenta que é o abandono de
milhões de crianças aos estragos de uma educação viciosa e imoral
que faz murchar essas jovens plantas que poderiam florescer para a
virtude, mas que, no entanto, são assassinadas pela sociedade que
fabrica “Ladrões, para ter o prazer de enforcá-los”.
Outra causa de miséria é o luxo e as despesas insensatas, pois
todas as classes sociais perseguem e ostentam excessos nas vestes e
na alimentação: “Colocai um freio ao avarento egoísmo dos ricos.
Se não remediardes os males que vos assinalo, não vos vanglorieis
de vossa injustiça (...)”.
Pondera sobre qual é o melhor sistema penitenciário e conclui que
seria uma repressão que conciliasse justiça com utilidade pública,
onde os condenados trabalhem para a sociedade que os mantém.
Sobre delação, nosso autor afirma que não é difícil divisar nas
leis uma grande humanidade aliada a um grande senso utilitário, pois
a lei confere recompensas ao delator, inclusive impunidade, se
cúmplice, a fim de que o malfeitor não se sinta mais seguro
perseverando num mau desígnio.
Católico fervoroso, More diz que se a lei castiga é para matar o
crime, conservando o homem, inclusive, afirma que “seria muito útil
tomar medidas moderadas e sábias para reprimir e acabar com a
vagabundagem. Temos acumulado leis sobre leis contra esse flagelo e o
mal é hoje pior do que nunca”.
Prossegue apontando que perversas cabeças estarão sempre procurando
por quais maquinações e intrigas os poderosos conservarão o cargo.
Os próximos ao poder querem glória, dinheiro e não economizam em
ardis para enganar a massa como: “simular uma guerra que se
aproxima, recolher impostos e depois, subitamente, fazer a paz,
celebrando esse acontecimento com todas as pompas”. É assim que a
nação fica deslumbrada e o reconhecimento público elevará até
aos céus as virtudes de governantes sedentos do sangue de seu povo.
Um dos meios que utilizam (até os dias de hoje!) é relatado assim:
“Um outro [governante] vem, e restaurando as multas pecuniárias
contidas nas leis, cria-se uma fonte de renda lucrativa e até
honrada, pois que se agiria em nome da justiça”.
Isso sem falar de outro que pensa se não seria de melhor proveito
lançar, sob pena de pesadas multas, uma multidão de novas
proibições, a maioria delas em “benefício” do povo.
More chama a atenção para o fato de que “A indigência e a
miséria degradam e embrutecem as almas, habituando-as ao sofrimento
e à escravidão, comprimindo-as a ponto de lhes tirar a energia
necessária para sacudir o jugo.”.
Afirma que gostaria de erguer-se e dizer aos que cercam os poderosos
que seus conselhos são infames, vergonhosos para os governantes,
funestos para o povo, que a honra e a felicidade de quem governa
consiste na riqueza de seu povo ainda mais que na sua própria: “Os
homens fizeram reis para os homens e não para os reis”, pois o
povo colocou chefes à sua frente para que pudessem viver comodamente
ao abrigo das violências e dos ultrajes.
Um governante que provocasse o ódio, a vergonha e o desprezo dos
cidadãos e cujo governo não pudesse manter pelas vexações, pela
pilhagem, pelo confisco e pela miséria, deveria descer a “rampa”
e depor o poder supremo, pois nadar em delícias, saciar-se de
voluptuosidade em meio às dores e gemidos de um povo, não é manter
uma nação e sim uma cadeia, completa.
Como pharmakon, propõe que vivam de seu patrimônio, que
meçam suas despesas na proporção de suas rendas: “(…) detende
as torrentes do vício; criai instituições de benemerência que
previnam o mal ao invés de inventar suplícios contra os infelizes
que uma administração e legislação absurda e bárbara impele ao
crime e à morte.”.
De fato, como encontrar um governante que tenha mais desejo de
trabalhar pela prosperidade do Estado, do que acumular milhões, se
os ministros e os políticos de hoje estão impregnados desses erros?
Entretanto, não poder desarraigar de uma só vez a CORRUPÇÃO, nem
abolir os costumes imorais, não é razão para se abandonar a causa
pública: “O piloto não abandona o navio diante da tempestade
porque não pode domar o vento. Há covardia ou má-fé em calar as
verdades que condenam a perversidade humana, sob o pretexto de que
serão ridicularizadas como quimeras impraticáveis”.
Thomas More é contundente ao dizer que “(…) onde todas as coisas
se medirem pelo dinheiro, não se poderá jamais organizar nem a
justiça nem a prosperidade social, a menos que denomineis justa a
sociedade em que o que há de melhor é a partilha dos piores, e que
considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a fortuna pública é
a presa dum punhado de indivíduos insaciáveis de prazeres, enquanto
a massa é devorada pela miséria”.
Entre os remédios para esses males, além de não traficar as
magistraturas, More indica suprimir o fausto e a representação nos
altos cargos, a fim de que o funcionário, para sustentar sua
posição, não se entregue à fraude e à rapina, para que não se
veja obrigado a dar aos mais ricos os cargos que deveriam caber aos
mais capazes.
Cabe à inteligência, essa atividade do espírito dirigida
incessantemente para a pesquisa, o aperfeiçoamento e a aplicação
das coisas úteis, que dá a superioridade do bem-estar material e
social, perseguir essa Utopia. Encampemos os ideais de More, Morus e
Moro.
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