
A sophrosyne (nada em excesso), a justa medida, o métron grego não dá conta de evitar o embate entre Thémis e Diké quando estas duas concepções de justiça se apresentam ao homem em oposição.
Foi nos legado pelo tragediógrafo grego Sófocles (496 a.C.) em sua obra “Antígona” (441 a.C.) uma abordagem mítica e lógica, mitológica, de um terrível dilema humano que sempre nos assolará. Ser atemporal não nos surpreende pois a principal característica do mito é sua inestoriabilidade, ou seja, um processo contínuo, um incessante vir-a-ser.
A sophrosyne (nada em excesso) que nos foi tão cara no artigo anterior sobre a polêmica das charges, a justa medida, o métron grego não dá conta de evitar o embate entre Thémis e Diké quando estas duas concepções de justiça se apresentam ao homem em oposição. Este drama eterno será vivido com toda intensidade e paixão pela tragicamente marcada filha de Édipo, neta do amaldiçoado transgressor Laio, filho de Lábdaco: a nobre Antígona.
Retomemos à tragédia Sofocliana de Édipo Rei que, ao ser apresentada em 430 a.C. desbancou o veterano Ésquilo. Marcado, pois portador da hamartía, maldição familiar dos Labdácias, Édipo é um inocente herói trágico. Sobre ele paira o justificável e legítimo argumento de ignorar a verdade sobre suas origens e nada poder fazer para fugir a seu inescapável destino já profetizado pelo oráculo de Apollo em Delfos: matar o pai e desposar a mãe, incorrendo numa transgressão à ordem (kosmós) da natureza (physis). Trata-se de uma aberração pois uma vez marido da própria mãe, tornou-se assim irmão e pai de seus filhos. No desenrolar de toda tragédia, Édipo não suporta a revelação de tamanha desgraça a seu espírito, diante da imensidão de seu infortúnio fura os próprios olhos e, nas trevas, retira-se da cidade. Filha zelosa e solidária, Antígona o acompanha. Pobre Antígona. Singular Antígona. Possui ainda mais uma irmã, a ponderada e razoável Ismene e seus dois irmãos: Polinices e Eteócles.
Mas onde inicia-se o dilema de Antígona, onde faz morada o embate entre Thémis e Diké? Quando se dá o confronto entre a Lei dos Deuses e a Lei dos Homens?
Polinices e Etéocles, irmãos de Antígona rivalizam-se e em lados adversários, à favor e contra Tebas “entremataram-se, fraternas mãos em ato de extinção recíprocas”. Creonte seu tio, agora Rei, personifica a Lei do Estado e esta é clara: um desertor, no caso Polinices, jamais pode vir a ser sepultado: “fique insepulto o seu cadáver e o devorem os cães e aves carniceiras em nojenta cena”.
Por Zeus, muito mais relevante que a morte em si, pois esta é certa, era a honra da sepultura, o descanso no outro mundo, a certeza de poder ter um funeral condigno, pagar a moeda ao barqueiro Caronte, fazer a travessia pelo Lethe, o rio do esquecimento, chegar ao Hades onde Plutão e Perséfone imperavam: O Reino dos Mortos.
Antígona sabe que, pela sagrada consagüinidade, deve enterrar seu irmão Polinices. É esta a observação da Lei de Zeus “... não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos, que elas vigem sem que ninguém possa dizer quando surgiram”. Está deflagado a polêmica sobre a qual muitos filósofos do direito se debruçaram (e debruçarão!) pois estas são questões fundamentais para o espírito humano, principalmente a do limite da autoridade do Estado sobre a consciência individual, e a do conflito entre as leis da consciência não escritas e o direito positivo.
O que acontece quando se opta por seguir suas próprias convicções interiores e princípios ético-morais ao invés de simplesmente aderir, sujeitando-se ao cumprimento das normas e dos deveres impostos pela lei escrita, quer seja a do Rei Creonte, quer seja a do Estado, da sociedade?
O drama de Antígona não consiste na dúvida sobre qual Lei seguir. Ela possui envergadura demais para este tipo de dúvida, pois como nos diz Sófocles: “evidencia-se a linhagem da donzela, indômita, de pai indômito: não cede nem no momento de enfrentar a adversidade”.
Qualquer que seja a opção há um preço a ser pago. Destemida, ousada e indomável, Antígona desconhece phobos (o medo, derivando-se daí a palavra fobia), atreve-se a desafiar a tirania de seu tio Creonte, explicita recusa em obedecer às Leis civis. O mântico cego Tirésias o alerta sem sucesso: “... os homens todos erram mas quem comete um erro não é insensato, nem sofre pelo mal que fez, se o remedia em vez de preferir mostrar-se inabalável; de fato, a intransigência leva à estupidez”. Numa tragédia, impensável aventar um final feliz para quem quer que seja: condenada a ser encerrada viva numa gruta, seu apaixonado pretendente era Hêmon, filho de Creonte que, desconsolado com a morte da amada e furioso com o crime de seu pai, se suicida. Eurídice, sua mãe, dilacerada pela perda do filho, apunhalando-se no fígado também põe fim a própria vida.
Creonte cai em si diante da estúpida intransigência de sua Lei e a questão aqui colocada transcende o mero certo e errado, como diz o coro: “Destaca-se a prudência, sobremodo como a primeira condição para a felicidade. Não se deve ofender aos deuses em nada. A desmedida empáfia nas palavras reverte em desmedidos golpes contra os soberbos que, já na velhice, aprendem afinal prudência”. Se nossa heroína pagou com sua própria vida, a dor de Creonte não foi nada branda: “Ai de mim! O autor destas desgraças sou eu... não sou mais nada! Venha, aconteça a última das mortes – a minha! - e traga o meu dia final, o mais feliz de todos! Venha, pois não quero viver nem mais um dia!.. Levem para bem longe este demente que sem querer te assassinou, meu filho, e a ti também, mulher! Ai de mim! Não sei qual dos dois mortos devo olhar nem para onde devo encaminhar-me!”
O desfecho de todo este drama é concluído com a redenção final da maldição familiar dos Labdácias (hamartía) por Antígona, como vemos neste elucidativo trecho em que o coro se dirige a ela e proclama:
“Tu te lançaste aos últimos extremosde atrevimento e te precipitastede encontro ao trono onde a justiça excelsatem sede, minha filha; pode serque na presente provação expiespecados cometidos por teu pai”.
Ainda que proferidos na longínqua aurora dos tempos, mesmo nos dias de hoje ouvimos o altivo e desafiador brado da heroína e este alicerça nossas convicções interiores contra as ordens de um poder arbitrário, mesmo que revestido de todas as formas de legalidade. É no âmago de nossas almas que ressoa a voz de Antígona: “Minhas Leis não são suas Leis. As minhas são, foram e sempre serão”.