“Na amizade cintila um
pouco do mistério de Deus”. Platão
No artigo anterior (AQUI), versando sobre o Ensaio “Da Amizade”, de
Michel de Montaigne (1533-1592), ficamos de ponderar sobre como se
assentam as questões relativas aos bens e ao dinheiro entre os
verdadeiros amigos.
Trata-se de uma questão melindrosa, pois muitos ainda consideram,
sexo, dinheiro e morte, temas tabus. De fato, não há dúvida de que
– tanto a eventual necessidade, quanto a permanente fragilidade
pecuniária – podem ser ainda mais constrangedoras que a própria
nudez. Envergonhados, nos negamos a evidenciar fragilidades desse
tipo e, por considerá-las verdadeiramente vexatórias, as ocultamos.
Sabemos que um dos pontos nevrálgicos em toda e qualquer relação
mais íntima (às vezes, até mesmo entre casais) diz respeito aos
bens e às questões financeiras. Portanto, se considerarmos como
sendo verdadeira a afirmação (atribuída a Delfim Neto) de que “a
parte mais sensível do corpo humano é o bolso” e a associarmos ao
jargão popular que “amigo é como parafuso, só se conhece na hora
do aperto”, como ficam as delicadas e embaraçosas questões
econômicas entre os verdadeiros amigos?
Referimo-nos aos amigos sinceros, pois o humanista, filósofo,
jurista e escritor francês, aponta que sim, claro que encontramos
facilmente pessoas aptas a travar relações superficiais conosco.
Mas isso não se verifica quando procuramos uma intimidade sem
reservas. E intimidade, estamos cônscios, não se força.
Montaigne nos esclarece que amizades sinceras atingem um tal grau de
perfeição que amigos assim nem perdem tempo pensando que devem algo
um ao outro, ou seja, não se fica medindo o que se faz ou o quanto
custou fazer algo por quem prezamos tanto.
E que, entre amigos leais, devido ao fato disso já estar tão bem
assentado e incutido em seus corações (tal qual ocorre entre os
cônjuges) são dispensáveis as palavras que estabelecem divisões
ou evidenciam diferença, tais como: favor, obrigação,
reconhecimento, pedido, agradecimento e outras.
Na verdade, quando um verdadeiro amigo pode beneficiar ao outro, o
benfeitor, ou seja, aquele que pôde ajudar é o legítimo
favorecido. Isso porque entre verdadeiros amigos, ambos colocam
acima de tudo a felicidade de agradar um ao outro e aquele amigo
que precisou está nos dando a chance de fazer algo genuinamente
prazeroso: “quem dá a seu amigo a oportunidade de fazê-lo é quem
se mostra mais generoso, pois lhe outorga a satisfação de realizar
o que mais lhe apraz”. Realmente, ajudar a um amigo é algo que
enche nosso coração de alegria.
Sobre a deferência, a consideração que nos é concedida pelo amigo
que nos procura, Montaigne relembra que quando o filósofo grego
Diógenes precisava de dinheiro, afirma o autor, dizia que ia
“reclamá-lo dos amigos”, e não que lhes ia pedir.
E a fim de exemplificar com um fato esse estado de alma, narra um
episódio de Eudâmidas que, pobre, tinha dois amigos ricos:
Charixênio de Licíon e Areteu de Corinto.
Conta-nos o francês que, às vésperas de morrer, Eudâmidas redigiu
seu testamento assim: “Lego a Areteu o cuidado de tomar conta de
minha mãe e suprir-lhe as necessidades durante a velhice; a
Charixênio a obrigação de desposar minha filha e constituir-lhe um
dote tão elevado quanto possível”. E reiterou que caso um deles
viesse a morrer, o que estivesse vivo ficaria incumbido de ambas as
missões.
Ele nos relata que os primeiros que viram o testamento de Eudâmidas
caçoaram dele, mas os seus herdeiros o aceitaram com uma alegria
espantosa. Infelizmente, seu amigo Charixênio faleceu cinco dias
depois e Areteu, que substituiu-o na parte que lhe cabia, tratou
cuidadosamente do sustento da mãe de Eudâmidas; e, elevando-se seu
patrimônio a cinco talentos, deu dois e meio à sua própria filha,
que era filha única, e dois e meio de dote à filha de seu amigo,
conforme manifestara ser de sua vontade. Ambas as moças se casaram
no mesmo dia.
Poder ajudar a um amigo necessitado, mais que uma dádiva, é uma
honra que nos concede aquele amigo que se encontra em apuros. Isso
demonstra que nos tem em elevadíssima conta, pois questões
particulares assim, confiamos somente aos íntimos.
Segundo o autor, é por isso que os legisladores, com o fito de
emprestar ao casamento uma vaga semelhança com essa ligação tão
sublime e de essência divina, que existe entre verdadeiros amigos,
proíbem as doações entre marido e mulher, tentando assim nos levar
a entender que o que é de cada um deve ser de ambos e que nada do
que lhes pertence se pode dividir ou atribuir pessoalmente a um dos
cônjuges.
O que verdadeiros amigos colocam acima de tudo é a felicidade um do
outro, por isso ficam tão felizes em obsequiar, em fazer favores,
agradar um ao outro. Sendo assim, à frase popularizada pelo
economista americano Milton Friedman (1912-2006) de que “não
existe almoço grátis” poderíamos conciliar: Mas existe sim,
almoço bancado de bom grado e com alegria pelo verdadeiro amigo.
Sobre bens e finanças, assentado que entre amigos, tudo é comum,
Montaigne prossegue salientando que amigo mesmo, de verdade, só se
tem um! Ele esclarece que nas amizades triviais, ordinárias,
corriqueiras, podemos nos dividir entre os inúmeros e diversos
amigos e suas inúmeras e diversas virtudes, talentos, generosidade,
bom gênio, enfim, apreciamos certos predicados nuns, outros dons em
outros: “Num a liberalidade, noutro o modo por que se conduz como
pai, e em outro ainda sua afeição fraternal, etc.”.
Mas insiste que essa amizade que nos preenche a alma e a domina não
pode subdividir-se, ou seja, aprecia-se a totalidade, pois para ele
não é possível “multiplicar e transformar em confraria essa
coisa única e homogênea tão difícil de encontrar no mundo”.
Caso você seja um desses agraciados com a dádiva de sentir que pode
contar com a benção de uma verdadeira amizade, – felizardo(a)! –
cultive-a.
Cultive-a (“Amizade nutre-se de comunicação”, reiterou
Montaigne) com zelo de quem dedica a uma flor rara, todo cuidado do
mundo, pois dentre os mistérios da vida, está a amizade, que –
magia! – diminui as angústias, divide as tristezas e multiplica as
alegrias: quem tem um amigo, encontrou um tesouro!
Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e
Mitologia Greco-romana da
Galleria Borghese, Roma
Confira vídeos no youtube.