“Devemos
indagar por ocasião de todos os desejos: o que há de acontecer quando o meu
apetite for satisfeito, e o que acontecerá se ele não o for?”. Epicuro
Nem movimento hippie, nem punk, tampouco o grunge,
nas últimas edições trouxemos as principais ideias propostas por três movimentos
que surpreenderam os antigos greco-romanos, conquistando muitos adeptos: o cinismo de Diógenes de Sínope, o estoicismo de Zenão e o epicurismo, de Epicuro.
Para concluir esse breve resumo de
algumas das ideias propostas por Epicuro, versaremos sobre a importância de
controlar, de “calibrar” nossos desejos para conquistar o prazer de uma vida feliz
que, além de ser a principal característica do epicurismo é também a maior
fonte de mal-entendidos e de preconceitos quanto a essa corrente filosófica.
Em sua “Carta a Meneceu”, Epicuro
foi bem claro: “Quando dizemos que o prazer é o fim [télos = propósito, objetivo, finalidade] da vida, não nos referimos
aos prazeres da gente dissoluta [desregrada, devassa, libertina] e aos que
residem no gozo, como acreditam aqueles que ignoram nossa doutrina”.
Obviamente, há prazeres vis e prazeres legítimos, edificantes.
O desvirtuamento do que é uma
vida prazerosa se acentuou quando o epicurismo foi adotado em Roma, tornando-se
sinônimo de lascívia, de indolência.
O prazer (em grego, hedoné) para Epicuro é a ausência de
sofrimento e não sensualidade, luxúria. O que ele intenta, através de sua
filosofia é certa “tranquilidade prazerosa” atestando que o prazer já está
“programado” em nossos genes.
Cícero, discípulo de Epicuro,
escreveu: “Todo animal, desde o nascimento, busca o prazer e foge da dor como o
maior dos males [...].”, afirmação esta que sabemos ter sido corroborada,
séculos depois, pelo “Pai” da psicanálise, Sigmund Freud.
Cordero chama a atenção para o
fato de que essa relação entre a dor a ser evitada e o prazer a ser alcançado é
essencial para que possamos compreender o que é o prazer para Epicuro, que em
uma de suas Máximas Capitais afirma: “A eliminação do sofrimento é limite do
alcance do prazer. Quando o prazer está presente, a dor, a pena, ou ambos de
uma só vez, estão ausentes”.
Podemos pensar a felicidade e o
prazer como sendo frutos da ausência de sofrimentos, sem dúvida, mas como
percebemos os sofrimentos?
Através da sensação, indica o
epicurismo: “É a sensação que detecta tanto o sofrimento como o momento em que
este cessa, mas os estímulos sensoriais chegam à alma, que é a que efetivamente
sente”.
Sendo assim, é a alma que deve
analisar quais prazeres ela precisa eleger e quais convêm de que se abstenha
para que não soframos: “Esse controle da alma se exerce sobre os desejos, já
que o prazer é a concretização de um desejo”, insiste Epicuro.
Desejo em grego é “epithymía”, sendo que o prefixo “epi” significa dirigir-se, ir até. E, “thymós”, significa peito, coração. O
desejo, então, é uma tensão em busca de algo, um anseio por algo que preencha o
peito.
Mas é ela, nossa alma, a
responsável por permitir ou impedir que esse desejo se realize, ou seja, que se
transforme em prazer.
Para a filosofia epicurista, nossos
desejos podem ser estratificados como sendo:
a) naturais e necessários;
b) naturais, mas desnecessários ou ainda,
c) nem naturais nem necessários: vazios.
Quanto aos nossos desejos naturais e necessários, a alma deve
admiti-los, pois seu objetivo é assegurar a sobrevivência do ser humano: “Este
é o clamor da carne: não ter fome, não ter sede, não ter frio. Quem alcança
tais estados pode rivalizar com Zeus”.
Além de comer, beber e vestir-se, morar,
ter amigos e filosofar (que, segundo Epicuro é o que vai nos curar de todos os
sofrimentos) também são desejos naturais e necessários.
Há outros desejos que, mesmo sendo
naturais, são desnecessários e
podemos optar por satisfazê-los ou ignorá-los. Entre eles está o desejo sexual
e a tendência à beleza estética que “se trata de um desejo desnecessário, pois
se pode prescindir dele para viver e, mais grave, pode ser pernicioso [doentio,
nocivo] (...).”, pois, desenfreados, extrapolam, driblando o senso de
saciedade.
Por fim, há os desejos que nem são naturais nem necessários, que
Epicuro denomina-os de “vazios”,
pois são ilimitados, como é o vazio. Como exemplos desses tipos de desejos,
Epicuro cita o desejo de que a alma seja imortal, de acumular riquezas ou de
amar infinitamente, tornando-nos ciumentos.
Segundo Epicuro, “Um estudo dos
desejos deve condicionar toda escolha e toda recusa à saúde do corpo e à
imperturbabilidade da alma, que é o fim da vida bem-aventurada”, sofremos
quando estamos carentes de algo. Cessou a carência, surge o prazer.
Mas salienta que, uma vez que o
sofrimento oriundo de uma carência cesse, isso não significa que o prazer possa
aumentar: “Essa situação de quietude, de calma, de tranquilidade,
caracteriza-se pela presença daquilo que Epicuro chama de ‘o prazer em
repouso’”, diz o estudioso Néstor Luis Cordero.
Talvez, o que traduza bem essa
sensação agradável de bem-estar e de serenidade seja o tão famoso quanto
almejado “estar em paz”.
Para que tenhamos uma vida
realmente feliz é necessário que saibamos escolher bem quais desejos iremos
satisfazer e aos quais devemos recusar. Para sacar desse discernimento
possuímos “sagacidade” (phrónesis), que
Epicuro diz ser até superior à filosofia: “caso se escolha satisfazer o desejo
de filosofar, é porque a sagacidade – que é prévia – escolheu bem”.
Assim como na Escola de Diógenes
(os cínicos), para os epicuristas, uma das características dos sábios é
justamente a autossuficiência (autarquia) que nos livra da tirania de sermos
reféns da necessidade de bens exteriores, como diz Cordero: “Quem está
acostumado a viver frugalmente, encontra um autêntico prazer em não precisar de
nada; quem está acostumado à abundância, por outro lado, nunca estará
satisfeito e será escravo da tirania e de falsas necessidades”.
Estarmos cônscios de que a morte
não deve ser temida (vide as razões no artigo anterior, clicando aqui),
sabermos escolher com lúcida sagacidade quais desejos serão privilegiados e que
a liberdade é possível, isso é ser Sábio. Se agirmos assim: “viverás como um
deus entre os homens”, diz Epicuro.
Dezembro. Vivenciamos o
encerramento de mais um ciclo; o momento é oportuno para um balanço de vida, rever
nossos sonhos e refletirmos sobre quais desejos eleger para que possamos
atingir a plenitude dessa vida prazerosa e feliz acenada por Epicuro. Um Ano
Novo de Paz, amigos.