Se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente." Machado de Assis
1. Desvelar – 2. Revelar – 3. Testemunhar – 4. Veracizar – 5. Autenticar
Versando sobre o que torna a realidade “real” (vide nosso artigo anterior http://lucienefelix.blogspot.com/2011/08/as-5-etapas-do-movimento-de-realizacao.html) constatamos que, fenomenologicamente, primeiro as coisas são expostas à luz, ou seja, desocultadas (desveladas); depois, faz-se necessário que sejam expressas (reveladas) através da linguagem.
Quando o homem fala, necessariamente, é com outro homem: “O alcance dessa fala é a confirmação da existência e da identidade não só de tudo aquilo com que alguém entra em contato ou desoculta, mas desse mesmo alguém.”, afirma Dulce Critelli. Saber e conhecer, isolada e solitariamente não é o que valida à realidade.
Seja lá o que for que tenha sido “constatado”, ou seja, desvelado e revelado (através da comunicação) deve necessariamente ser visto e ouvido pelos demais (testemunhado): um Advento!
Detenhamo-nos, agora, às três últimas etapas desse processo: Testemunhar – Veracizar – Autenticar.
O que dá lastro à existência real, do que descobrimos e expressamos é o testemunho dos outros (mesmo que discordem do que estamos afirmando). Sermos corroborados evita que sejamos tidos como loucos, dementes, “sem noção”.
Coexistimos! Juntos, desvelamos e revelamos o que algo é: “O outro com quem alguém fala sobre algo não é um mero receptor de uma mensagem, mas seu co-elaborador. Isto é, ele é elemento constituinte da possibilidade desse algo se mostrar.”
Mas, sem testemunho, o que quer que tenha sido desvelado e revelado se perde, como se a manifestação nunca tivesse aparecido: “Mais, à medida que o compreendido por alguém é testemunhado pelos outros, esses outros não só consolidam a existência daquilo que alguém compreendeu, como também consolidam, ao mesmo tempo, a existência desse alguém que compreendeu algo e trouxe esse algo compreendido para o testemunho”.
Ao testemunhar, os outros participam da realização do ato da realidade: “O testemunho é composto por uma simultaneidade de olhares diversos”. O mero testemunho não implica, necessariamente, juízo de valor: “A abertura do testemunho é [apenas] um trazer algo ao mundo comum como pertencente a ele”.
Mas, além de contarmos com o testemunho dos outros, para que algo seja, de fato, “real”, também se faz necessário que seja referendado como verdadeiro pelo senso comum (não menosprezemo-lo!) por sua relevância pública (veracizado) e, por fim, autenticado, que é o que ocorre quando algo é efetivado em sua consistência através da vivência afetiva e singular dos indivíduos.
Critelli afirma que o que advém ao mundo, no trajeto de sua realização, anseia ser verdadeiro: “Coisa alguma é verdadeira em si mesma, mas veracizada mediante uma referência, um critério, algo que venha de fora dela mesma e a autorize a ser o que é e como é.”
Até o presente, espíritos desencarnados, extraterrestres (mesmo que testemunhados por alguns – devido a não-permanência num horizonte temporal), jamais foram tidos como ‘reais’. Não passam pelo crivo do 4º passo, que é a veracização.
Um exemplo de veracização é a composição da água. Além do desocultamento (desvelamento) dos elementos (H2O) presentes na água é preciso “um critério comum (a toda uma sociedade e/ou civilização) que considere, no caso, a repetição e a constância dessa mesma composição” o que legitima esta definição.
Por falar em água, o mesmo se dá em relação às nossas sensações e emoções: “Aquilo que um indivíduo sente só chega a ser um sentimento (de medo, vergonha, felicidade, amor, raiva) quando confirmado como tal pelo testemunho de outros.”
No entanto, reconhecemos esses sentimentos como sendo ‘reais’ porque eles já foram demarcados como relevantes e, portanto, existentes (veracizados) do ponto de vista da esfera pública. De todos, ocultamos a inveja que por não ser distinta e nobre, constrange.
Paradoxalmente, algozes e reféns das ‘autoridades’, todos os nossos conceitos a respeito da vida, da convivência cotidiana, foram forjados em sua veracidade por meio de alguma relevância pública, numa esfera exterior, mais ampla: “A própria ciência moderna, para que fosse aceita como saber fidedigno em nossa civilização, dependeu da conquista de sua relevância pública.”
Estejamos cônscios: há uma trama política presente no movimento de veracização de algo. Nesse jogo, que garante as relações imediatas de força e poder, que dá suporte às diversas ideologias, os homens buscam convencerem-se mutuamente das verdades que atribuem às coisas: “Por vezes esse jogo subverte o modo mais plenamente humano de jogá-lo, que é através do discurso ou das palavras [sempre passíveis de manipulação com interesses escusos], e se estabelece por meio da força e da violência.”
Considerando verdade e realidade como sendo elementos indissociáveis, veracizar é submeter ao crivo do que pressupomos guardiã da ‘verdade’: a opinião pública. É o que faz com que algo prevaleça. Mas é do movimento, do vir-a-ser, a dinâmica de erigir. E o que parecia perene, perece.
Tomemos como exemplo, nossa atual concepção de ‘louco’. Honrado noutro momento da história, pois considerado totalmente tomado pelo divino, o louco já foi digno de respeito e reverência.
Hoje, o senso comum veraciza o louco como doente mental, indigno de crédito: “Estas concepções tiveram e tem relevância pública e, através delas, as interações humanas e a organização social se estruturam desta ou daquela maneira.”
Tendo o senso comum, de relevância pública, conceituado e veracizado a loucura como sendo doença, a sociedade moderna: “institucionalizou tratamento e propulsionou toda uma sistemática em torno dela, desde laboratórios e centros especializados de estudos até a formação de profissionais, desenvolvimento de drogas, medicamentos, aparelhagens e instalações (como os hospícios), produção organizada e literatura específica, etc.”.
Oriundos de novos consensos de relevância pública há infindáveis e irrefreáveis desdobramentos de novas realidades (para os idosos, os deficientes, os homossexuais, os obesos, etc.).
A ratio, passível de ser manipulada pelo jogo de interesses daqueles que detém poder, aponta e respalda o que é (ou não) de relevância pública. Cria e justifica a necessidade de incluir ou banir o que quer que seja do convívio social: “(...) todo movimento de veracização de algo subsiste pela articulação dos jogos de poder. E aqui não nos referimos ao poder político ‘stricto sensu’, mas a todo jogo em que alguns indivíduos ou grupos que por eles se desvela, revela e testemunha. É um jogo de convencimento, ao qual pertencem, inclusive, todas as formas de competição.”
Obviamente, os meios de comunicação de massa estão a serviço da veracização. Algo tomado por ‘verdade’ pelo senso comum, torna-se ‘real’. E a realidade tangencia e conduz nada menos que o próprio destino da humanidade.
Sobre a autenticação, que é a última etapa no movimento de realização da realidade, convém esclarecer que, diferente do testemunho e da veracização, ela é obra do próprio indivíduo: “É através de cada homem que o que aparece tem sua mais plena alternativa de se tornar real. E de se tornar real para outros.”
A singularidade (pessoal e intransferível) é de vital importância para o conhecimento. Quem, por fim, valida ou não a existência de Deus, por exemplo, independente do que quer que tenha sido veracizado, é um indivíduo particular: “Daí que todas as coisas de que falamos, com que temos contato, de que ouvimos falar ou compreendemos só chegam a ser consistentes pela experiência individual. Experiência que não está embasada pelo raciocínio ou pelo entendimento intelectual, mas passa pelo crivo do sentir. Por isso dizemos que Deus só tem consistência pela fé de alguém.” A razão veraciza, mas quem autentica é a sensibilidade.
Para além de combustível do eterno embate entre Individual X Coletivo, o particular e o universal, onde um não resiste, sequer existe, sem o outro, para a fenomenologia, cabe ao Homem, por um breve e irrepetível instante, vivenciar a grandeza desse magnânimo estatuto divino: Ser o que É.
Em memória do distinto Dr. José Antônio Batistela*
(*) Vizinho, Dr. Batistela, faleceu em 22 de agosto, aos 72 anos, vítima de câncer no pulmão. Foi sepultado neste dia, às 16h30min. No mesmo horário, a porta de vidro temperado da ESDC estourou, algo que nunca havia acontecido antes, em todo o Edifício. Observamos que um cartaz, fixado em sua porta, informava: “Fechado por motivo de LUTO”. Este advento foi desvelado, revelado e testemunhado por três pessoas: eu, Profª Elaine Vessoni e D. Sueli Arrechi. Embora a sociedade ainda não veracize a presença de “Espíritos”, todas nós autenticamos a evidência deste inusitado e intrigante advento.